AS MUITAS VIDAS DE ALICE MUNRO – VERA SAAD

Coluna | Palimpsesto


Eu me lembro de, pequena, ter o nome trocado. Uma hora me chamavam Marina, noutra Lygia, noutra Luciana. Quando minha avó me via, dizia no mínimo dois nomes diferentes antes de acertar o meu. Eram muitos os netos, muita a vida, muitos a quem chamar, pouco tempo a se lembrar de tudo. Às vezes eu a corrigia, em outras ela mesma se corrigia e estalava a língua como quem dissesse, um dia você vai passar por isso. Ela estava certa, algum tempo depois, vivi o mesmo com meus enteados. Carlos era Fábio, Fábio era Carlos, Fabiana era, bem, Fabiana, mas muitas vezes Fá, que poderia também ser Fábio. Ria de mim mesma nesses momentos, da adulta e da criança, que reprovava a avó quando trocava os nomes.

Quantos nomes já ouvi, muitos tantos decorei, de outros apenas tenho o apelido como certo, de outros nem isso. Identidade de pessoas que conheci, que de muitos modos ajudou a formar a minha. Hoje entendo que também sou feita dessas outras histórias, desses outros nomes, pelos quais me confundiram e com os quais me confundi. Por isso gosto e sempre gostei da presença de muitos personagens em um livro, desses que a gente precisa voltar algumas páginas para saber de quem se trata. Construídos e desconstruídos pela inter-relação.

Os personagens de Alice Munro guardam essa riqueza. É muito difícil conhecer um personagem de Alice Munro apenas com o que entregam as primeiras páginas. Eles ganham corpo à medida que ganha corpo a história, as relações com outros nomes que surgem ou ressurgem. Muitas vezes percebo que os personagens de seus contos são bem mais complexos que de muitos romances que leio, o que torna a obra dessa escritora tão particular. Ler Alice Munro é também ler o humano, há muitas vidas, muito de vida em cada um de seus livros. Sempre me sinto enriquecida quando acabo um livro seu.

No dia 10 de julho, essa escritora faz 91 anos, mas também comemoro os anos de Sabitha, de Alfrida, de Nina, de Quennie. Tanta vida a se celebrar, graças aos 91 anos de Alice Munro, quem eu tardei a conhecer, mas que hoje não largo mais. Um dia ainda terei a chance de agradecê-la pela criação dos tantos nomes a mais que hoje me constituem.

P.S.: Uma curiosidade. Durante o processo de leitura para a construção de meu romance Dança Sueca, disseram que eu tinha criado muitos personagens, muitos deles poderiam ser eliminados. Pouco tempo depois li um conto de Alice Munro, em que a protagonista passa por uma situação semelhante em uma oficina literária, quando seu texto é criticado por justamente ter muitos personagens. Aqui termino este palimpsesto, quando fui influenciada por Alice Munro antes mesmo de conhecê-la.

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Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger. Mantém uma coluna na revista Vício Velho.