Coluna | Sentido
Já há muitos dias, talvez mais de uma semana, a rã instalada no ralo da varanda chamava chuva. Croac, croac, cró-cró-cró. Rã, xamã, cumpriu-se a profecia: o sertão não se fez mar, mas a rua se fez rio. Está parecendo uma imagem do encontro do Negro com o Solimões, que a gente conhece das reportagens ufanistas. Só que aqui as águas que se encontram são as da fossa com as da lama, e a piracema é de ratos: carentes da técnica dos castores, primos distantes, para construir diques e barragens, abandonam seus covis agora submersos e, carregando as ninhadas cegas nas costas, refugiam-se nas restingas, essa última uma palavra que recordamos das aulas de geografia física mas cujo sentido poucos retiveram, tendo se evolado da maioria de nós em vez de passar para o lençol freático da memória. Eu, por exemplo, acabo de consultar o dicionário.
Essas terras emersas culminam junto aos muros em vicejantes matagais, em meio aos quais a passagem constante abre trilhas, e onde jazem, semi-soterradas, as manilhas que seriam usadas para o saneamento e subseqüente calçamento da rua, se a verba não tivesse sido desviada pela quarta vez, no mínimo. Um dia serão desenterradas por arqueólogos maravilhados. A placa da obra foi removida mas o buraco no limiar da via principal, cuja escavação desastrada já cortara os cabos de telefonia e nos deixara incomunicáveis por um dia inteiro, só foi tapado depois que uma mulher grávida de oito meses caiu nele à noite, mercê da iluminação precária. Sem embargo dessas minudências, a prefeitura ameaça tomar os imóveis dos que não estão com o iptu em dia.
Os terrenos baldios tornaram-se brejos onde os sapos se congregam numa seresta dionisíaca. Pela manhã serão berçários de girinos. Não se sabe de onde surgiram tão rápido e em tal número. É perfeitamente compreensível que até um dia desses nas longas trevas da história a geração espontânea tenha sido a doutrina científica. Do contrário teriam que atribuir o fenômeno a um ser divino. Os trovões, que também já foram atribuídos aos deuses, começaram às cinco da manhã, calando as alvíssaras dos passarinhos, e agora mesmo ribombam. Confesso que de trovões tão altos não me recordo. Os telhados flutuam e os carros boiam, o sol seqüestrado, metido num saco de nuvens, em plena abertura de veraneio. Talvez os meteorologistas devessem convocar a imprensa para explicar o que são monções à população perplexa, agora que temos terremotos no interior e tufões na costa, sinais dos tempos, prenúncios da besta.
Sei, sei que isso está parecendo livro de Jorge Amado ou Gabriel García Márquez, mas que fazer, se a realidade é prodigiosa? Os realistas é que eram uns mentirosos. Com efeito, qualquer um desses dois poderia ambientar nesta cidade de Jaboatão dos Guararapes uma de suas estórias. São daqui os tubarões internacionalmente notórios que quase vêm dar à praia para abocanhar os banhistas, que por sua vez insistem em freqüentar o lugar onde os ataques se deram, numa lacuna dos arrecifes, assomando tão numerosos aos domingos que sua visão ao longe faz pensar numa colônia de pingüins dividida entre a água e a terra. Aqui um leão de circo faminto puxou para dentro da jaula um menino que se aproximara para olhá-lo de perto. Aqui um edifício chamado Areia branca, justamente o material indevidamente misturado ao cimento em sua construção, caiu de uma hora para outra; os ex-moradores continuam a esperar indenização, e pode-se supor que o mesmo acontece com a mulher grávida de oito meses que caiu no buraco da minha rua. Aqui o mar está engolindo a orla, solapando os prédios. Não obstante tudo isso, uma onda neorrealista varre o mundo quase sem encontrar resistência, ainda mais agora com a morte de Saramago, esse parabolista, e a aposentadoria do próprio Gabo.
Há pessoas que se aventuram lá fora, desdenhando o risco tão remoto quanto real dos raios e o mais real que remoto da leptospirose, uma vez que a chuva recrudesce a cada hora, como se caísse de rachaduras no céu, e cada relâmpago parece um piscar de olhos do universo, como os do atirador no exato instante em que abre fogo. Temporal é uma convulsão do tempo. É possível que mais tarde se perceba a influência que o regime das marés exerce sobre o nível dessas águas, como se fosse um canal a céu aberto, fenômeno que meu irmão mais velho teve oportunidade de detectar por ocasião de dilúvios menores. E caso a musa dos apaixonados se reflita na superfície da lagoa, o cenário, embalado pelos hinos amorosos dos anfíbios, será fétido e poético. Quem diria que a lua interviria em minha rua sem ser rima de mau gosto? É até provável, a experiência nos ensina, que dois fios de poste encostem, um transformador estoure e fiquemos à luz de velas, o firmamento tanto mais claro quanto aqui embaixo se fizer escuro. Mas se a chuva não der trégua nem de dia nem de noite, as provisões vão escassear sem demora. Talvez tenhamos que recorrer aos ratos, se não forem eles a nos tomar de assalto. E se essa mensagem que agora insiro numa garrafa e solto nas águas chegar a suas mãos, caro leitor, toda ajuda será bem-vinda, mas, por favor, não contate as autoridades. Elas estão do lado dos roedores.
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A crônica acima foi escrita há mais de 10 anos. Deixei os sinais de trema. O Brasil é uma calamidade permanente.
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João Paulo Parisio (@jpparisio), nascido no Recife em 4 de setembro de 1982, é autor de Legião anônima (contos, 2014, Cepe editora), Esculturas fluidas (poemas, 2015, Cepe editora), Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018, editora Patuá) e Retrocausalidade (romance, 2020, prêmio Pernambuco, Cepe editora), obras que o situaram entre os expoentes da literatura brasileira contemporânea. Apontado pelo crítico José Castello como “um dos principais nomes da nova geração de narradores brasileiros”, tem ainda textos veiculados em revistas, jornais e sites especializados.