“POR QUE O POETA NÃO MORRE”, PAGU? – RENATA DE CASTRO

Coluna | Sibila


Tenho várias cicatrizes, mas estou viva.

A primeira vez que soube de Pagu não foi em nenhuma aula de Literatura no meu Ensino Médio. Infelizmente, foi em uma série de TV há quase vinte anos. Algo na personagem me fisgou de imediato. Diria que qualquer mulher idealista e/ou amante da liberdade não passa incólume por Patrícia Galvão, ainda que dramatizada. Na década de 1920, quando Patrícia ainda era uma normalista, vestir-se como se quer, maquiar-se e fumar em público já podia ser lido como um posicionamento político. Não é rebeldia gratuita enfrentar o status quo, sobretudo quando se é mulher.

Pagu nasce Patrícia Rehder Galvão. Torna-se Pagu apenas em 1928, aos dezoito anos de idade, quando Raul Bopp escreve o poema Coco de Pagu. O apelido dá-se por meio de um engano. Bopp acreditava ser Pagu Patrícia Gulart e não Galvão. O novo nome, no entanto, não significou o nascimento da escritora. Antes de ser Pagu, aos quinze anos, já era Patsy, colaboradora do Brás Jornal.  

Com frequência, a jovem de olhos moles de fazer doer, como escreveu Bopp, é mencionada somente como o pivô da separação do casal Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. É raro vermos o nome de Pagu ser citado entre os escritores modernistas, embora seu livro Parque Industrial, de 1933 – publicado sob o pseudônimo de Mara Lobo –, seja o primeiro romance brasileiro cujos protagonistas são operários.

Não sei se a negligência com seu nome se deve ao fato de ter sido mulher, de ter sido mulher insurreta ou por ter sido comunista. Sabemos de tantos escritores que expressaram sua simpatia pelo comunismo – e, por isso, foram presos –, mas poucos que tenham militado como Pagu. Em 1931, já integrante do Partido Comunista Brasileiro, ela é detida ao participar de um comício de estivadores em Santos, rendendo-lhe o título de primeira mulher presa no Brasil por razões políticas.

Possivelmente o Álbum de Pagu, também publicado como Croquis de Pagu – junção de vinte oito desenhos e poemas – foi criado por ela entre 1928 e 1930. Esse material só veio a público na década de 70, pois estava entre os documentos de Tarsila, a quem Pagu admirava e que a influenciou esteticamente tanto quanto Oswald. Nesse trabalho, observam-se algumas marcas do movimento modernista: a escrita livre, ousada e transgressora junto aos desenhos que compunham uma coisa só.

Apesar do espírito contestador da jovem mulher, Pagu – já em 1931 casada com Oswald e mãe de Rudá – faz duras críticas às feministas da época no jornal panfletário do casal O Homem do Povo. Ela assina a coluna A Mulher do Povo e critica as pautas das “feministas de elite”, cujas reinvindicações centravam-se na liberdade sexual feminina, na maternidade consciente e no direito ao voto de “mulheres cultas”, negando assim o voto aos operários e trabalhadores sem instrução. Isto é, Pagu compreendia que um feminismo focado exclusivamente no gênero e alheio a outras variáveis de opressão, como classe e raça, não era um feminismo aceitável.

Pagu dedica-se ao PCB, mudando-se para uma vila operária e empregando-se como tecelã. No entanto, no fim de 33, por ordem do partido, saí do país como correspondente de alguns jornais. Vai aos Estados Unidos, ao continente asiático e ao continente europeu. A militante conhece a Rússia e se decepciona profundamente com o stalinismo.

Em uma primeira viagem sozinha à Argentina e depois nessa grande viagem mencionada acima, Pagu registra os assédios por parte de todo tipo de homem, incluindo Jorge Luís Borges e um padre paraense. Sobre sua passagem por Hollywood, Pagu registra o assédio constante: Houve momentos em que maldisse minha situação de fêmea para os farejadores. Se fosse homem, talvez pudesse andar mais tranquila pelas ruas. E embora tenha participado, aos 17 anos, de um concurso de beleza em São Paulo, promovido pela Fox, estando em Hollywood aos 23, como jornalista e comunista, não aceitou a oferta de um possível contrato para atuar.

Em 34, em Paris, conviveu com os surrealistas André Breton, Paul Éluard, Benjamin Péret, trabalhou como tradutora, estudou marxismo, militou participando de atos e foi presa três vezes. Voltou ao Brasil gravemente ferida em 35, mas não parou de militar e logo foi presa e torturada pelo Estado Novo.

Por uma década, Pagu dedicou-se ao seu ideal, mesmo tendo sido traída pelo partido desde a primeira prisão. Saiu da cadeia em 1940. Alquebrada, tentou suicídio duas vezes. Todavia, surpreendentemente seguiu muito ativa em diversas atividades na vida política e artística até sua morte em 1962.

Na década de 90, foram descobertos contos policiais que Pagu, sob o pseudônimo de King Shelter, publicou nos anos 40 na revista Detective. Dedicou-se à dramaturgia, traduziu Octavio Paz, Eugène Ionesco e James Joyce.

Em 1948, Pagu publica, agora como Solange Sohl, no suplemento literário do Diário de São Paulo, entre outros, seu famoso poema Natureza morta:

Os livros são dorsos de estantes distantes quebradas.
Estou dependurada na parede feita um quadro.
Ninguém me segurou pelos cabelos.
Puseram um prego em meu coração para que eu não me mova
Espetaram, hein? a ave na parede
Mas conservaram os meus olhos
É verdade que eles estão parados
Como os meus dedos, na mesma frase.
As letras que eu poderia escrever
Espicharam-se em coágulos azuis.
Que monótono o mar!

Os meus pés não dão mais um passo.
O meu sangue chorando
As crianças gritando,
Os homens morrendo
O tempo andando
As luzes fulgindo,
As casas subindo,
O dinheiro circulando,
O dinheiro caindo.
Os namorados passando, passeando,
Os ventres estourando
O lixo aumentando,
Que monótono o mar!

Procurei acender de novo o cigarro.
Por que o poeta não morre?
Por que o coração engorda?
Por que as crianças crescem?
Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?
Por que existem telhados e avenidas?
Por que se escrevem cartas e existe o jornal?
Que monótono o mar!

Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo.
Si eu ainda tivesse unhas
Enterraria os meus dedos nesse espaço branco
Vertem os meus olhos uma fumaça salgada
Este mar, este mar não escorre por minhas faces.
Estou com tanto frio, e não tenho ninguém…
Nem a presença dos corvos.

Arrisco dizer que a escolha de ‘Sohl’ não foi gratuita. Em alemão, ‘die Sohle’ pode significar ‘sola’. Ainda que a grafia não corresponda fielmente, há no eu-lírico de Solange Sohl muita clareza e nenhum idealismo a respeito do mundo; é um eu-lírico, como na metáfora popular, com os pés no chão.

O eu-lírico sente-se estagnado – enquanto a vida corre na segunda estrofe – ferido, entre a vida e a morte; tem o coração pregado, entretanto, não perdeu a capacidade de enxergar; tem os olhos cheios d’água, mas não consegue chorar. É um estado de suspensão constante.

Natureza Morta é a captura de um processo suspenso, sem retorno ou continuidade. A despeito desse estado, existe esperança no poeta, na criança, nas cartas. Havia ainda algo entre os versos de 1928, Pagu era selvagem./ Inteligente/ E besta…,e os de 1948, Espetaram, hein? a ave na parede.

Dois anos depois de Natureza Morta, Pagu publicou o manifesto Verdade e liberdade, dando-nos uma dimensão bem menos lírica do que viveu nos anos de prisão e como o período de atividade política ostensiva a marcou inexoravelmente:

[…] De degrau em degrau desci a escada das degradações, porque o partido precisava de quem não tivesse um escrúpulo, de quem não tivesse personalidade, de quem não discutisse. De quem apenas aceitasse. Reduziram-me ao trapo […] Mas, não haviam conseguido destruir a personalidade que transitoriamente submeteram. E o ideal ruiu, na Rússia, diante da infância miserável das sarjetas, os pés descalços e os olhos agudos de fome. […] Ainda militei. Ainda esperei que a polícia me liquidasse. Ainda enfrentei as tropas de choque nas ruas de Paris – três meses de hospital. Ainda lutei: nenhuma bala me alcançava.
O embaixador Sousa Dantas […] salvou-me… da mesma sorte de Olga Benario […]
Em 1935, procurei uma revolução que o partido preparava e não achei revolução nenhuma […] Apenas o fiasco. […] E todos nós para a cadeia.
Harry Berger sofreu muito: sofreu talvez mais do que todos. Mas, felizmente, enlouqueceu. Acabou o tormento. Anestesiou-se.
Outros se mataram. Outros foram mortos. Também passei por essa prova. Também tentaram me esganar em muito boas condições.
Agora, saio de um túnel.
Tenho várias cicatrizes, mas estou viva.

Segundo seu marido, o jornalista e escritor Geraldo Ferraz, sua última frase teria sido: Desabotoa-me esta gola! Nada mais significativo e coerente com a vida de Pagu. Apesar da inspiração ser diversa, fecho com Bopp: Eh Pagu eh!

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Renata de Castro 
( linktr.ee ) é poetisa, professora, tradutora, feminista e doutora em Literatura. Tem três livros publicados: O terceiro quarto (Benfazeja, 2017), Hystéra (Escaleras, 2018) e De quando estive em Alto-Mar: poemas de afogamento e algumas mortes felizes (Escaleras, 2021). Fez parte das Antologias Poéticas Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2016), Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017), Senhoras Obscenas (Patuá, 2019) e da antologia bilíngue de poesia contemporânea de escritoras brasileiras e cubanas Sem mordaça. Sin mordaza (2021). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.