SUPERNOVA: UM POEMA DE DIEGO REBOUÇAS – FÁBIO PESSANHA

coluna | palavra : alucinógeno


um poema pode ser uma explosão, seu próprio big bang. desde uma constituição em que palavra e caos se irmanam, seu ritmo reage ao que vier do encontro com a melhor ideia, sonoridade, com a reciprocidade imagética entre poeta, linguagem e espaço. isto se dá na engenharia do verso, que se estabelece num singular instante. a eternidade do poema fica guardada dentro da possibilidade de se desencadearem mais e mais leituras, vidas e realidades desse pequeno apocalipse estelar. juntos à hecatombe estão a gênese do enigma, a fronteira, o limite, o alcance, a metamorfose. é quando, por exemplo, escama e grão se traduzem, e na tensão deste encontro a supernova acontece no e como o poema de diego rebouças.

supernova
para Walmir Thomazi Cardoso

uma palavra: peixe
corta o poema

assim como um cafezal
atravessa a paisagem

seus cheiros se embrenham, clareira
na parte central de alguma memória

escama e grão reacendem
a imagem da cozinha matinal
quando tudo era preparo
pra receber visitas

vem, menino! ajuda
a bater a massa do bolo!

e no canto o menino
(espátula na mão)
com olhos de é assim
que nasce um poema?

no emaranhar de cheiros e sons
que inda ontem diziam
isso escama, aquilo açúcar?

que poderoso fermento esse
vagueia pelo noturno dos séculos
a escavar estradas rudes
porém urgentes?

entranhando escama e grão
numa só semente

misto de folhagens e guelras
arbusto visto só de relance
na prateada fotossíntese

mas como nada! cada
folha uma escama
na nova espécie inaugurada

e seu descobrimento é a prova
(uma entre tantas)
de que no mais profundo
e particular oceano brilham,
inumeráveis, supernovas

as palavras ocupam o espaço entre materialização e transfiguração, e antes que qualquer teoria me pegue, sinto com a experiência mais que empírica o lugar pelo qual o poema acontece e deixa aparecer visadas de real na (inter)invenção de realidades. algo assim: o diego foi provocado pela poesia ao coabitar a memória de quando uma palavra: peixe / corta o poema // assim como um cafezal / atravessa a paisagem. desse episódio, peixe e cafezal se encontram na fundição semântica da imagem e exercem a convulsão do corpo numa possível linhagem. seria talvez a corporeidade de um encontro, no momento em que o menino híbrido entre memória e verso arranja o espaço-tempo-mnemônico do instante.

provo com as mãos a escorregadia música das escamas para condensar a personificação do grão no espaço entre universos. mar e céu alinhavados pela terra, ante o brilho que encontra nos sentidos a exorbitância. a gente bebe da memória o excesso. aqui vinga a tangência, a lembrança em cujos cheiros se embrenham. também o lampejo acompanhado do calor. o afeto destrambelhado de ordem, mas refeito em função dos que chegam quando tudo era preparo / para receber as visitas. do terno lugar em que paladar e fome se encontram, ficamos com o coração cheio por se criar uma possível experiência de infância: vem menino! ajuda / a bater a massa do bolo.

o bolo fica pronto, a gente sente até o cheiro. daí, me ocorre um arrepio daqueles de quando algo está prestes a nascer. vem a curiosidade dos olhos, que perguntam é assim / que nasce um poema? uma epopeia cujo cenário é a cozinha. os sabores, cores. a mistura de aromas, o lugar para onde se chama aquele ente querido no canto, a fim de contar um segredo – e ninguém pode saber, viu?! avós, avôs, tios, tias, primas, primos, o emaranhado de pessoas responsável pelo cultivo de afetos, bons ou ruins. chego a pensar no espanto que nomeia a origem da filosofia e que, na poesia, esse espanto tem a ver com escavações. funda-se uma arqueologia ao se esfregar os ossos das lembranças e delas perceber o quanto estamos todos ligados pela alvenaria das experiências, as quais nos tornam ponte para o que talvez não mais sejamos, embora reticentes ao que porventura se refaça no futuro das histórias para contar.

a gente pensa que o tempo passa, mas depois aprende que ele vigora, afora qualquer possibilidade de contagem. há pouco te perguntei: isso escama, aquilo açúcar? depois cogitamos a formulação estratosférica das conversas – as maneiras de as pessoas se afetarem, cá entre nós –, o fermento das coisas, no quanto a proporção desse elemento pode tornar algo fofo – poético-sinestesicamente – ou minguar na expectativa da espera. parece que estamos sempre no lugar do quase, no entre das coisas, no limite entre escama e grão. lembrei de quando estava na faculdade e meu professor falava da arte culinária como grande metáfora para leitura e linguagem. pego na estante um livro e leio: “A linguagem é a ‘arte culinária’ do ser de cada um. Ela é nosso ser, nossa memória. Somos sempre memória”.

indo ainda mais fundo nos cantos da cozinha se chega à simbiose, entranhando escama e grão / numa só semente // misto de folhagens e guelras. mesmo que eu fosse correndo contar, acho que ninguém acreditaria. menino de façanhas lúdicas, talvez dissessem. mas seguro forte a matéria dessa história, numa tentativa de garantir que nada escapasse, fazendo dos dedos uma mescla de rede e arado para dar conta da nova espécie inaugurada. pescar e plantar se tornam íntimos ao desfazer a suposta antinomia. e tem mais, porque compõe esse acontecimento a intensidade do fulgor. após a explosão – o big bang que dá início a essa fábula –, ficam os rastros da genealogia luminescente. estamos o todo tempo no raio de um instante híbrido, que se expande ao encontro do seu fim. o itinerário sensível das palavras no corpo da memória, na densidade do poema, na expectativa do outro que chega em segredo ou no alarde dos afetos.

no canto da cozinha, um pouco afastados da janela, te ouço e você aponta alguns mistérios: a família, a memória mais que lembrança (manifestação de realidade na vibração do que está aparentemente ausente), a ponte. achamos estar no lugar limítrofe entre a potência do que um dia foi e do que virá a ser. a gente sempre se espanta com a descoberta cotidiana da identidade, ao saber que no mais profundo e particular oceano brilham, inumeráveis, supernovas. com cara de quem percebeu novamente o mundo, a gente ri, inocentes do choque em expansão entre o nado do peixe e a paisagem do cafezal. colhemos dessa fusão a semeadura que nos reacende historicamente, até que

a mãe entra esbaforida com a chegada das visitas. menino, vai lavar essas mãos, se arruma e corre, que o bolo vai esfriar!

p.s. aproveitando que falamos de memória, seja no sentido das lembranças ou na instituição de realidades, não dá para não contar que me recordo de quando o poema “supernova” foi apresentado pelo diego rebouças na oficina ministrada remotamente pelo poeta carlito azevedo durante a pandemia, em junho de 2020. de lá pra cá, e dez anos após o diego ter lançado seu primeiro livro – Travessia (Livros Ilimitados, 2012) –, nasceu a polpa do enigma que me habita é a mesma que me ultrapassa, publicado pela 7Letras agora em 2022, livro no qual encontramos o citado poema. também não posso esquecer de que acima mencionei um trecho de um livro que li na época da faculdade. trata-se de Leitura: questões (Tempo Brasileiro, 2015), de manuel antônio de castro. das muitas possibilidades de leitura, o livro do diego alça um arco entre investigação subjetiva e proposição de uma engenharia poemática muito própria. fica então o convite para a disposição de mergulhos e alcance das estrelas, ao provarmos da semente híbrida entre escama e grão.

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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.