BILHETES ATEMPORAIS – JOÃO PAULO PARISIO

Coluna | Sentido


Com A mulher do tempo Renata Santana, ainda em plena trintolescência, atinge uma singular maturidade, e com isso não me refiro a qualquer apagamento lúcido, mas ao refinamento do fulgor. Como uma poesia escrita a laser, e que por isso sabe ser solta no ar. Deixa uma fumarola fragrante de incenso, mas exalada por nossa carne viva, nosso couro cabeludo, nossos pentelhos. Um odor assim incômodo como aliciante. Renata associa certa implacabilidade do olhar à leveza belamente gratuita da borboleta. Como se dissesse: pelo menos nada, ainda, nos impede de brincar. Então brinquemos. Se identificamos brincar com fazer pouco da séria luta, nos suprimimos de antemão o que ainda não nos foi tomado. Todo aquele que exerce sua liberdade luta, já que a luta é pela liberdade, desde que não use sua liberdade para opor-se à liberdade alheia.

Então riamos. Com o corpo, quando der, com a mente, sempre. Mente mente. Mente é feita pra mentir. Mentiras belas. Fabulosas. Não é preciso acreditar nelas. Ficam mais bonitas assim, nuinhas, dançando seus próprios corpos.

A melhor poesia se dá quando nos atinge antes que a entendamos bem, pois já a entendemos como se compreende música clássica, ou qualquer música instrumental. Sabemos se é alegre ou triste, sabemos muito mais. A frase de Schopenhauer, que reproduzo de ouvido: música é filosofia expressa numa linguagem que não alcançamos. As pessoas discutem se metafísica faz algum sentido. Transcendência. Certo é que o maravilhoso está ao alcance da mão, tão certo ainda quanto escorrerá entre os dedos, se coará, feito luz. Também a poesia pode ser filosofia expressa numa linguagem que não alcançamos e essa linguagem reencarnada em palavras. Uma espécie de volta, artifício, estratagema que dá à linguagem humana o que lhe escapa, por exemplo num envelope lírico muito usado por esta poeta: o discurso a um interlocutor ausente, solilóquio-diálogo, poemas-bilhete urdidos com a leveza inerente a esse gênero escanteado: o bilhete. Intuímos aqui o crush, ali a amiga, mais além o ex, algum ex.

todos os verbos já foram ditos na Criação
pensei isso
e quase te envio como frase de impacto

a frase não dita
está em alguma órbita, morta
e brilha, em torno de um corpo

afrasenãodita

ainda
despencará
impontual feito a exclamação

que exterminou os dinossauros.

Toda frase não dita. Toda frase ainda não pensada. Às vezes compreender é uma redução. O melhor é o que estava antes, mas pode, com a liberdade, ser posposto à compreensão, e os três estágios assim justapostos observados juntos. Constata-se que a poesia de Renata Santana é claramente a de alguém que olhou nos olhos do desamparo humano, mas isso não é o extraordinário. A graça é que ela não perdeu o humor. O abismo a olhou de volta, ela cingiu sua cabeça com uma guirlanda. É inteligente demais para não ter olhado o abismo. Tornou-se sábia. Sempre foi hábil. Pratica quase um ondular entre um sentido íntimo, privado, e outro público, universal.

dentre as vagas do meu coração
há uma sala
onde abrigo tudo que recupero em mim

no momento
há mais velas que peças
acesas, na intenção do que falta

cada vela indica o que perdi
ilumina também o que voltou

e na madrugada do ser
as sombras brincam nas paredes da sala
película de um filme com defeito

alguns chamam de memória.

Lúcida, não esquece de ser lúdica. Alguém já fez esse jogo de palavras. Não importa. Importa que todo texto se dá diante de um abismo, avança sobre ele como uma ponte autodesenvolvível, ou através dele, atraindo com sua gravidade pedregulhos, asteroides que a integrarão e aumentarão sua massa. Assim um livro fica pujante, caudaloso. Não precisa ser grosso. É pelo modo como viaja através das corredeiras do silêncio. O modo como a poeta determina sua próxima frase (musical) tem algo da inflexão certeiramente intuitiva do velejador que assimila dados demais de uma vez. Não tem tempo de pensar neles, deve processá-los num átimo. A vantagem do escritor é que pode revisar sua performance a crédito perdido, até torná-la irreconhecivelmente, mesmo porque nesse processo podem se dar novas ignições e alumbramentos, granadas escondidas nos veios das rochas. Há o risco, portanto, do desfiguramento. Do qual Renata se desembaraça com galhardia, outra palavra que diz muito de seu modo, espécie de avatar disso, a deusa Galhardia, que ela é. O texto de Renata foi lixiviado até parecer uma produção espontânea, uma alga dançando no fundo do mar combina a suprema modéstia e o supremo exibicionismo. A coisa mais parecida com ela seria uma moça que sozinha no quarto se exibisse ao espelho sonhando ser coelhinha da Playboy.

O modo como Renata determina seu próximo verso tem muito dos movimentos de uma dançarina de flamenco, aquela de Cabral por exemplo. Não são premeditados, sua inusitada harmonia vem de um caráter genuíno e de uma técnica menos de dança em si que de sincronizar emoção e gesto. A mulher do tempo dança. Parece que tem seis braços e segura muitos objetos ao mesmo tempo. Representando talvez a eternidade escondida em pequenos labirintos, numa impressão digital. Nos arabescos dos pequenos gestos diários, na fumaça do café. Não é preciso invocar as estrelas, não é preciso dizer que para não dizer que não falei das flores falarei das flores. As flores estão aí. As flores estão dadas. Nós estamos dados,

conjurados do acaso sonso da cidade

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João Paulo Parisio (@jpparisio), nascido no Recife em 4 de setembro de 1982, é autor de Legião anônima (contos, 2014, Cepe), Esculturas fluidas (poemas, 2015, Cepe), Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018, Patuá), Retrocausalidade (romance, 2020, prêmio Hermilo Borba Filho, Cepe) e Beija-flor (contos, 2022, Vacatussa), obras que o situaram entre os expoentes da literatura brasileira contemporânea. Apontado pelo crítico José Castello como “um dos principais nomes da nova geração de narradores brasileiros”, tem ainda textos veiculados em revistas, jornais e sites especializados.