Coluna | Palimpsesto
Demorei algum tempo para entender o que meu pai queria dizer quando falava “O diabo é poderoso, não porque ele é o diabo, mas porque é velho”. Essa frase era dita sobretudo ante a saída a algum problema aparentemente sem solução. Ele se referia não tanto à maldade, ou mesmo à velhice, mas à compreensão de vida.
Eu me lembro de olhar para ele e perceber o quanto ainda me faltava de entendimento. Não que hoje saiba muito, tampouco deixo de olhar para ele admirada, muitas vezes os problemas continuam para mim sem solução, mas percebo que algo aprendo, dia após dia, a ponto de não apenas entender a frase de meu pai, como também de pensar que o diabo só consegue ser o diabo porque já viu da vida o suficiente para ser Mal.
Neste palimpsesto, o diabo é a estrela, com trechos bastante provocativos para que se enriqueçam a discussão e o meu parco entendimento.
O primeiro trecho pertence ao diálogo entre Deus e o Diabo em Evangelho segundo Jesus Cristo, de Saramago. O segundo, a um diálogo entre Deus e o Diabo no conto “A igreja do Diabo”, de Machado de Assis.
Vamos à raspadinha:
“E por que haveria eu de receber-te e perdoar-te, não me dirás, Porque se o fizeres, se usares comigo, agora, daquele mesmo perdão que no futuro prometerás tão facilmente à esquerda e à direita, então acaba-se aqui hoje o Mal, teu filho não precisará morrer, o teu reino será, não apenas esta terra de hebreus, mas o mundo inteiro, conhecido e por conhecer, e mais do que o mundo, o universo, por toda a parte o Bem governará, e eu cantarei, na última e humilde fila dos anjos que te permaneceram fiéis, mais fiel então do que todos, porque arrependido, eu cantarei os teus louvores, tudo terminará como se não tivesse sido, tudo começará a ser como se dessa maneira devesse ser sempre, Lá que tens talento para enredar almas e perdê-las, isso sabia eu, mas um discurso assim nunca te tinha ouvido, um talento oratório, uma lábia, não há dúvida, quase me convencias, Não me aceitas, não me perdoas, Não te aceito, não te perdoo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora, Porquê, Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro […]”, In: SARAMAGO, J. Evangelho segundo Jesus Cristo.
“— Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura…
— Velho retórico! murmurou o Senhor.
— Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor — a indiferença, ao menos — com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha — ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida… Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda… Vou a negócios mais altos…
Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o Diabo.
— Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?
— Já vos disse que não.
— Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?
— Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
— Negas esta morte?
— Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los… […]” In: ASSIS, M. “A igreja do diabo”.
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Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger. Mantém uma coluna na revista Vício Velho.