Coluna | Sibila
A mulher escritora, de Madame de Genlis, data de 1806. Desde o ano passado, o público brasileiro passou a ter acesso a essa obra por meio da tradução de Valter Cesar Pinheiro, publicada pela Alameda. Ao ter em mãos meu exemplar, a primeira coisa que me chamou a atenção foi o título. Minha curiosidade inicial deveu-se ao fato de ser um livro de autoria feminina que problematiza o papel da mulher que escreve no século XVIII.
Depois de provocada pelo título em português, verifiquei o original – mania antiga que cultivo independentemente de conhecer a língua ou não. Eis que o título La femme auteur – sendo “auteur” um substantivo masculino, autor – é por si só muito significativo, sintetiza uma questão da época em que foi escrito e que se estende até os dias de hoje, o insistente apagamento da mulher na produção literária.
Até então, eu desconhecia o fato de ter havido uma discussão precedente à polêmica disputa entre o uso das palavras poeta e poetisa – no caso, “poète” e “poetésse”, em francês. Como componho o grupo das pessoas que acreditam que pensar um determinado tema sob uma perspectiva diacrônica ajuda a ampliar a reflexão sobre ele, é-me inevitável, ao olhar para a questão “auteur/autrice” [autor/autora], lembrar a discussão atual sobre o uso de poeta, poetisa e mulher poeta – esta última forma também seguindo o uso francês de “femme poète”.
A autora de La femme auteur, Caroline-Stéphanie-Félicité du Crest de Saint-Aubin – Madame de Genlis –, de nome pomposo e origem nobre, teve uma longa carreira – que inclui ter sido preceptora dos príncipes da família real francesa – e reconhecida produção literária entre os séculos XVIII e XIX.
Sua volumosa criação costuma ser dividida em literatura juvenil (pedagógica), literatura autobiográfica e literatura feminina. Em 1811, publicou o ensaio De l’influence des femmes sur la littérature française, comme protectrices des lettres et comme auteurs, ou Précis de l’histoire des femmes françaises les plus célèbres [Sobre a influência das mulheres na literatura francesa, como protetoras das letras e como escritoras, ou Compêndio da história das mulheres francesas mais célebres], título que parece confirmar que, em La femme auteur, Madame de Genlis ficcionaliza, em uma narrativa romanesca, as adversidades pelas quais passou ao se tornar uma escritora publicada.
Nesse ensaio, de acordo com Damien Zanone – em texto que abre a edição mencionada acima –, Madame de Genlis recusa os “juízos universalmente aceitos sobre as mulheres”, “contraditórios ou vazios de sentido”, recusa o recorrente pensamento da época de “que a constituição das mulheres seja inferior à dos homens”, sustentando sua argumentação sem praticamente recorrer às questões “naturais” e pontuando que a falta de acesso à educação, cuja consequência era uma formação intelectual desigual entre homens e mulheres, era um problema contornável. Segundo a escritora, os homens tinham o poder de definir “os níveis na literatura”, já que apenas eles poderiam conceder honrarias, “distinções de que são excluídas todas as mulheres”. Madame de Genlis ainda acrescenta que já teria existido, até aquele momento, “uma profusão de mulheres escritoras de todos os gêneros e em todas as classes”.
Em A mulher escritora, a autora traz à tona as dificuldades que uma mulher que escrevia tinha em seu meio social, em seu relacionamento com outras mulheres e com os homens, quando as normas de decoro, nos séculos XVIII e XIX, na França exigiam da mulher discrição e humildade extremas, sendo considerado soberba e futilidade qualquer comportamento diferente do determinado. A protagonista da narrativa perde seu amor, por exemplo, a quem conquistou com muita inteligência e estratégia, por crescer aos olhos do amado a partir do momento em que sua publicação se torna um sucesso de vendas.
Tendo sido, em sua época, Madame de Genlis uma crítica à opressão feminina, por que teria ela escolhido um termo masculino para se referir à mulher que escreve?
A palavra francesa “autrice”, como feminino de “auteur”, já era utilizada muito antes do século XIX, uma vez que era aplicada como equivalente à palavra latina “auctrix”. Esta, por sua vez, é o feminino de “auctor”, que conotava principalmente aquele que cria e funda. Nos textos cristãos, encontravam-se, pois, ocorrências do vocábulo “auctrix” com uma significação de criadora, concordando com algum substantivo.
O problema do uso de “autrice” emerge à medida que a palavra começa a se referir às mulheres que escrevem. Isto é, a questão que surge é sobre a legitimação de a quem se aplica “autrice”. Portanto, a disputa pelo uso da palavra não se deu por questões gramaticais.
Dois nomes do século XVII são importantes nessa discussão: Jean-Louis Guez de Balzac – um dos membros fundadores da Academia Francesa, que passa a regular a língua – e Marie de Gournay – uma autodidata em línguas clássicas, protofeminista e uma das primeiras francesas a ter carreira literária.
Os argumentos de Guez de Balzac contra “autrice” relacionavam-se menos ao uso de femininos formados a partir dos sufxos –trice e –esse, já que os admitia em outras construções, que à mulher que escrevia. O escritor fazia frente à Marie de Gournay justamente por ela reivindicar igualdade entre homens e mulheres. Em sua tradução da Eneida, de Virgílio, por exemplo, Gournay usa as palavras “autrice” e “tyranne” [tirana], mesmo quando no texto original, em latim, Juno chama a si de “auctor” – o que nos revela que, na verdade, o uso em latim também apresentava variação.
Por mais de um século, foi com base nos argumentos do parcial Guez de Balzac, que os gramáticos e lexicógrafos sustentaram que “auteur” não admitia o uso feminino. Em razão disso, o primeiro dicionário de Língua Francesa apresentava o verbete “auteur” para se referir à mulher que escreve, bem como ao homem, de modo a abolir o uso da palavra “autrice” nos manuais de língua do século XVIII. É, no mínimo, curioso observar que “autrice” foi apagada justamente quando havia uma quantidade bastante expressiva de mulheres escritoras na França.
Depois de um século de apagamento, o uso de “autrice” volta a ganhar defensores de peso como Retif de La Bretonne. O debate volta à tona. No entanto, a aplicação de “autrice” ganha um caráter de neologismo ou barbarismo, esvaziado de sua origem latina. Mais uma vez, havia dois grupos oponentes: aqueles que eram contra o uso da palavra e seguiam a Academia Francesa, em seu conservadorismo e elitismo – leia-se também sexismo –, e aqueles que eram a favor do uso, como neologismo ou não.
Considerando que La femme auteur foi publicada no início do século XIX e que Madame de Genlis foi uma defensora da igualdade de gênero, a questão que se impõe é: por que ela não escreveu o título “L’autrice” [a autora]? Não teria sido bem recebida entre os leitores a quem pretendia atingir? Teria sido, então, uma decisão estratégica? Ela não estaria a par do debate sobre “auteur/autrice” e apenas seguiu o que determinava a Academia? Essas hipóteses parecem plausíveis?
Por enquanto, não sei se há uma resposta, se ela escreveu em algum lugar sua preferência por “femme auteur”. Fato é que as palavras não são inocentes e, de modo isolado, nem sempre – ou nunca – suas origens justificam seus usos impregnados de diversas variáveis sociais. No caso dos femininos, dificilmente não passamos por algum debate sexista. Se durante muito tempo na história ocidental as mulheres não tiveram espaço na função de escritoras, se sempre precisamos lidar com um neutro igual a um masculino – assim como outras línguas neolatinas, como o francês –, é inegável nosso apagamento. Reivindicar “autrice”, autora, escritora é também reivindicar poetisa e abandonar mulher poeta.
Deixo, assim, a proposta de reflexão, pois essa é uma discussão para outro texto.
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Renata de Castro ( linktr.ee ) é poetisa, professora, tradutora, feminista e doutora em Literatura. Tem três livros publicados: O terceiro quarto (Benfazeja, 2017), Hystéra (Escaleras, 2018) e De quando estive em Alto-Mar: poemas de afogamento e algumas mortes felizes (Escaleras, 2021). Fez parte das Antologias Poéticas Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2016), Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017), Senhoras Obscenas (Patuá, 2019) e da antologia bilíngue de poesia contemporânea de escritoras brasileiras e cubanas Sem mordaça. Sin mordaza (2021). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.