O POEMA INFÂNCIA, DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO – FÁBIO PESSANHA

coluna | palavra : alucinógeno


 

palavras se realizam na arquitetura do dizer ou no abandono de uma frase. vez em quando é lugar; outras vezes, tempo; ou ambos. nessa conjugação se concretiza a infância como o não dizer, ou ainda o retorno incessante a algo que talvez se compreenda por dúvida fundamental. também tem a ver com cultivo, o qual faz florescer algumas sortes ou até desejos. o tempo na travessia do lugar mais que posição, porque se a gente não a esquece, ela – a infância – nos acompanha desde quando nos abrimos para a escuta do mundo. joão cabral de melo neto antes de cerebrar invenções surrealizava imagens, ao fazer alargar meninices. um pouco desse acolá nos desbrava na abertura de passagens. que então haja, e fiquemos sendo enquanto nos houver criança.

Infância

Sobre o lado ímpar da memória
o anjo da guarda esqueceu
perguntas que não se respondem.

Seriam hélices
aviões locomotivas
timidamente precocidade
balões-cativos si-bemol?

Mas meus dez anos indiferentes
rodaram mais uma vez
nos mesmos intermináveis carrosséis.

dos vários modos de se tentar saber a infância, os caminhos mais férteis são os da encruzilhada. aqui se transpõe a travessia carregada ao longo dos anos. por isso, saber pode ser o gosto da experiência. provar as palavras nascendo no meio da frase, as imagens dentro do verso. memória fica além do muro tanto quanto dentro, expondo a planta baixa da vida – por que não, também do poema –, ao incorporar o que devém da poesia. estar à parte – o ímpar – na sugestão da singularidade: memória como acontecimento. o lugar onde o anjo da guarda esqueceu / perguntas que não se respondem.

questiona-se o sabor dos mistérios. conclusões quase sempre são uma reação imediata. vale considerar que respostas repõem as perguntas por nascerem como aquilo que se oferece continuamente. o lado ímpar da memória, talvez, o espaço intransitivo sobre o qual se instalam algumas palavras na procura por seu dilema. ou desde a dúvida antesmente apresentada e já extinta no ato de sua aparição. então, ficam os rastros como possibilidade:

Seriam hélices / aviões locomotivas / timidamente precocidade / balões-cativos si-bemol? dos muitos modos de se tentar saber a infância, uma via são as palavras. perigosas, por demais libidinosas. mas também o gesto de presença como corpo enraizado nos desvios. um exercício no levante de fronteiras para a desproteção ao que impõe rivalidade entre os espaços e seus encontros. estes, um sem saber de sintomas para a história criada desde o primeiro esquecimento. anjos da guarda que, segundo contam, estão sempre em companhia das pessoas. tramam a armadilha do poético ao provocarem declives semânticos. esquecem palavras onde na memória não há vistoria para pares, por cima da indivisibilidade. elas são indiscerníveis.

perguntas que não se respondem porque não têm respostas, porque não têm trânsito, embora haja passagem para desdobramentos – palavras : paradoxos. palavra : alucinógeno. aqui não se ensaia uma solução. o estame crítico da poesia se ocuparia da cisão dos fatos, pois importantes são os imprevistos que as hélices geram. substantivos, substâncias transportadoras – aviões locomotivas –, alavancadas como ponto alto ao modo do advérbio – timidamente –; tão ímpares quanto fecundas. potentes nos impactos, promovem circunstâncias características sem sair da sua singularidade. palavra que chama a outra pela conjugação das diferenças, juntas na elaboração de uma terceira via do sentido – balões-cativos si-bemol. ascendem na afetividade, embora meio tom abaixo na escala diatônica das indagações.

lugar tensional-associativo é a conjunção “mas”, também um tanto desprendida das marcas do tempo vital. entre a experiência sentida e a narrada, a figura da adversativa agrega os trâmites favoráveis para modos de distância. no “Mas” dos meus dez anos indiferentes a trama se levanta para arquitetar a textura da infância desde a desenvoltura da idade, tanto a que não chega quanto a da que não para de ir. todos os meus dez anos juntos aos muitos que se foram, prenhes dos que virão. alheios ao crivo cronológico que demarque o isso ou aquilo das idades – tão minhas, tão de quem chega e acena de longe. a gente pertence um pouco ao imprevisto dos que aparecem de repente, independentemente se vindos de dentro ou de fora.

pela voz poético-narrativa sinto a lonjura das palavras aqui tão perto. poema como estado de passagem, adversidade. junto vem a indeterminação com o verbo plural-terceiro-pessoano dizendo que os anos da minha apática década rodaram mais uma vez. e continuam, decerto. não é nem que chegassem a algum sinônimo, quem sabe construídos sempre estivessem todos esses meus dez anos – viajantes. e de tanto que vêm, no muito que vão, frisam no tempo (se for isso possível) o ritmo das voltas no entorno da existência – seu eixo. a insistência também percebida como memória traça algo fluido, embora possa ser compreendido enquanto signo. rodar e insistir na andança, até que se erijam as histórias no fenômeno do acontecido.

nos anos dos meus dias, a infância materializa os desejos de roda. aqui não como cantiga, e sim nos mesmos intermináveis carrosséis, cuja memória acontece no encontro entre aço e madeira; na tinta solta na roupa, de tão gastas as voltas; na gordura de tantas mãos passantes no corpo de um brinquedo à mercê do sol e frio. por outro lado, o inacabável carrossel restitui a identidade ao que se torna mudança na permanência. o cambiante estado de preservação durante a maturação da existência, a qual é possível chamar de vigência do que não se pode responder – anjo sabiamente esquecido.

p.s. no primeiro livro de João Cabral de Melo Neto – Pedra do sono (1942) – o antilirismo ainda não dava tanto as caras. vingava um particular caráter surrealista no trato com as imagens e no modo de arranjar o poema, conforme creio acontecer em “Infância” – aqui, fonte de provocação para este texto-incorporação. outra questão interessante está em ajustarmos o foco de leitura ao percebermos que o poema em voga não pergunta pela palavra, mas pergunta a palavra. e a resposta, claro, é a palavra em sua dimensão ambígua. ou seja, a transitividade contínua da imagem que se move verbalmente, mas não deixa de ser o contorno alegórico do que se dá a ver. o poema assume o verbo tensionalmente com a mediação, no caso, de Melo Neto. enfim, vocês sabem, o movimento aqui é este, o de encostar num poema e deixar que ele me atravesse enquanto leitor-autor e que, se tudo der certo, também te atravesse, leitorx/interlocutorx. a gente não se sabe bem no que isso vai dar… mas não podemos deixar de tentar…

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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.