Coluna | Sentido
O incidente com Salman Rushdie não cria apenas um precedente: opera uma transposição do ficcional para o real. O que antes estaria num romance, agora jaz no indelével livro da realidade.
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“Paulo Freire, orgulho de Pernambuco, aquele que escreveu Brida.” Fragmento de conversa ouvido na loja de conveniência.
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Uma metáfora é também um flash de uma outra estória. Diegeticamente, uma intrusão de outro tempo, outro lugar, que se articula com o universo do texto por afinidade. Machado de Assis: “com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da própria sibila”.
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Um dia Sísifo teve a sensação de que estava em todos os pontos de seu percurso na montanha ao mesmo tempo, e isso era uma forma de estar parado. Sem que nem os deuses percebessem.
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Os tons da fala são todo um verdadeiro idioma mesclado com as palavras. Escritor é também aquele que recria essa multifatorialidade no território da só-palavra, como um pintor simula a tridimensionalidade espacial no plano. E não me refiro apenas a diálogos.
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Reconhecer-se em negação é confessar uma pequena loucura, um glitch na razão.
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Até a filosofia ocidental nasceu na Ásia. Os gregos tiveram que dar um passo para o leste a fim de implementá-la à sombra longa de zigurates babilônios, nas figuras de Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxágoras, do emigrado Pitágoras, que semeou suas favas cósmicas e incontadas no que seria a Itália.
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O brasileiro lambda não aceita sua historicidade. Pensa viver fora dela. Finge crer que a História é uma superstição constrangedora, e a desigualdade o resultado de trabalho por um lado e indolência por outro, como na fábula da cigarra e da formiga.
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Uma cultura é um idioma do universo. Somos seu discurso. Um país que deu (apenas para arrolar ao acaso dois exemplos populares mas menos óbvios) Djavan e Cássia Eller deve encerrar rubi na carne monstruosa.
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Como a beleza acha tantas rotas? Beleza é uma ordem incompreensível?
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Se uma pessoa lúcida tem esperanças, trata-se mais de confessá-las que de defendê-las.
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E se tivesse teste de dopping em debate eleitoral?
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E pensar que com palavras ainda dá pra fazer objetos aguçadíssimos.
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A amizade é a relação mais sofisticada, por seu caráter eletivo, e pela natureza dessa eletividade. O amor de mãe é sublime, mas também bruto e visceral. Teu amigo é aquele cuja existência perante si é como uma dança. Quanto mais embevecedora, maior o valor dado ao amigo.
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Que coisa aterrorizante é a doutrinação tranquilizadora. Faz pressupor, do outro lado, algo digno de toda intranquilidade.
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Todo o mundo do familiar é uma frágil cabana na tempestade.
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Quando alguém diz “isso não entra na minha cabeça”, pode estar se iniciando uma contagem regressiva para que – entre. No prazo de aproximadamente três meses, mas pode ser de trinta anos.
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Passou por dentro do mercado só pra sentir cheiro de peixe. Afinal, tudo que é alienígena vivifica. O contraste nos revela.
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O escritor que nunca sonhou virar adjetivo que atire a primeira bolinha de papel.
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Foram ameaças de morte?
Doutor, foram mais promessas.
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Às vezes fingir que está sentindo alguma coisa é a forma mais eficiente de fingir que não está sentindo.
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Lembro do dia em que chorei no escuro pedindo que meu cachorrinho de borracha ganhasse vida, num tempo em que os canudos de Toddynho não franjavam sem lograr romper o lacre, e agora estou com quarenta anos.
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João Paulo Parisio (@jpparisio), nascido no Recife em 4 de setembro de 1982, é autor de Legião anônima (contos, 2014, Cepe editora), Esculturas fluidas (poemas, 2015, Cepe editora), Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018, editora Patuá) e Retrocausalidade (romance, 2020, prêmio Pernambuco, Cepe editora), obras que o situaram entre os expoentes da literatura brasileira contemporânea. Apontado pelo crítico José Castello como “um dos principais nomes da nova geração de narradores brasileiros”, tem ainda textos veiculados em revistas, jornais e sites especializados.