Coluna | Sibila
Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor.
Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso
mofador de outros, e ainda assim o dou a lume.
Úrsula, romance publicado em 1859, tem hoje o lugar de primeiro romance abolicionista da Literatura Brasileira, escrito pela primeira romancista brasileira, Maria Firmina dos Reis. Mas esse lugar pioneiro de Reis e de sua obra tem sido reconhecido apenas muito recentemente pela Academia.
Com mais de duas décadas de ensino de literatura, nunca vi em nenhum compêndio escolar que passou por minhas mãos o nome de Maria Firmina dos Reis. Pode-se – e talvez se deva em muitos momentos – contestar a legitimidade da pesquisa acadêmica como um elemento fundamental para apresentação de obras literárias em livros didáticos. No livro adotado há cinco anos pelo colégio onde leciono, por exemplo, há somente o nome de três escritoras, Raquel de Queiroz, Cecília Meireles e Clarice Lispector.
Se for levada em conta a etnia das autoras acima mencionadas, é preciso marcar que são mulheres brancas. Não que o livro didático em questão não tenha um capítulo para tratar do que os autores denominaram de literatura negro-brasileira, não. Há o último capítulo – aquele com o qual os professores têm dificuldade de trabalhar já no fim do ano letivo –, mas, mesmo nele, não se lê os nomes de Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus ou Conceição Evaristo, por exemplo. Não há mulheres.
É relevante ressaltar que se trata de um livro didático amplamente utilizado na rede pública de ensino. Ensino este composto em sua maioria por estudantes negros. Isto é, a esses alunos é negado um reconhecimento de si na produção literária do país. Mas também é negado a todos o conhecimento de que há autores negros na história da literatura brasileira. Felizmente, graças ao trabalho de pesquisadores sérios, hoje sabemos que durante muito tempo houve um esforço de embranquecer Machado de Assis e Lima Barreto.
Ainda que o apagamento da autoria feminina não fosse uma questão a ser pensada, nada justifica não conhecer na escola – lugar onde comumente a literatura é-nos apresentada – o primeiro romance brasileiro antiescravista, anterior, inclusive, ao famoso poema Navio Negreiro, de Castro Alves – este, sim, reconhecido e legitimado como o escritor abolicionista do Romantismo. O que provoca a elaboração da pergunta: teria sido Reis apagada por tanto tempo por ser uma mulher negra?
Em Úrsula, os escravizados falam de si mesmos e de suas perspectivas sobre a escravidão. Ou seja, não é apenas uma denúncia por meio da voz do narrador ou de algum personagem branco – o que já não seria pouco para a época. Reis escreve o primeiro romance em que personagens escravizadas têm espaço, têm a palavra. A denúncia dá-se por meio do discurso do negro, igualmente dividido em uma personagem feminina e uma masculina: Susana e Túlio.
Olhar para a personagem Túlio pode provocar no leitor um sentimento ambíguo, uma vez que ele, Túlio, presta lealdade ao senhor branco que compra sua alforria. Na narrativa, claro, essa lealdade justifica-se em um paralelismo com as práticas cavaleirescas, entre o cavaleiro e seu fiel escudeiro – um dos temas da estética romântica, da qual faz parte Úrsula. No entanto, se considerado o contexto social do escravizado e do senhor que compõe o grupo que escraviza, a lealdade só se ampara em um olhar gentil para o branco antiescravista, uma vez que ele não age efetivamente para que a abolição aconteça.
Já a personagem Susana, uma senhora, conta ao leitor como era sua vida livre, quando jovem, em seu país de origem no continente africano, antes de ser aprisionada e apartada de sua família. Ao falar de si, Reis, por meio de Susana, reivindica a humanidade dos escravizados, negada durante séculos pelos escravocratas:
Ainda não tinha vencido cem braças de caminho, quando um assobio, que repercutiu nas matas, me veio orientar acerca do perigo iminente, que aí me aguardava. E logo dois homens apareceram, e amarraram-se com cordas. Era uma prisioneira – era uma escrava! Foi embalde que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. Julguei enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possível… a sorte me reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram daqueles lugares, onde tudo me ficava – pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! Meu Deus! O que se passou no fundo de minha alma, só vós o pudestes avaliar!…
Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. Davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos!
Muitos não deixavam chegar a esse último extremo – davam-se à morte.
Nos dois últimos dias não houve mais alimento. Os mais insofridos entraram a vozear. Grande Deus! Da escotilha lançaram sobre nós água e breu fervendo, que escaldou-nos e veio dar a morte aos cabeças do motim.
A dor da pátria, dos entes caros, da liberdade foram sufocadas nessa viagem pelo horror constante de tamanhas atrocidades.
É preciso ler Úrsula em seu tempo, sabendo que foi escrito e publicado no século XIX, antes da abolição. Susana não tem a palavra apenas em passagens que se relacionam à ação central do romance – o amor de Úrsula e Tancredo. Ela fala sobre si em um capítulo que leva seu nome, assim como Túlio. Maria Firmina dos Reis abre um espaço historicamente negado aos negros. Talvez por isso o apagamento de seu nome. E, por isso mesmo, é urgente trazê-lo à tona.
Eu estava concluindo a leitura de Úrsula com meus alunos, quando me chegou a notícia de que Maria Firmina dos Reis é a homenageada da Feira Literária Internacional de Paraty de 2022. Como professora, fico feliz que isso aconteça. É um reconhecimento que legitima Reis – ainda que ela só precise de leitores para tal. Como mulher e escritora, fico exultante, por ser mais uma autora que vem sendo descoberta no sentido literal da palavra – tirar a coberta de cima, pois que descobrir pressupõe que foi coberta antes.
A Literatura não tem em si mesma obrigações, no entanto, tem a capacidade de revolucionar. Conhecer a obra de Reis é uma oportunidade de refletirmos sobre nossa sociedade tão marcada pelo racismo e machismo. Dêmos à Maria Firmina dos Reis o que lhe é de direito.
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Renata de Castro ( linktr.ee ) é poetisa, professora, tradutora, feminista e doutora em Literatura. Tem três livros publicados: O terceiro quarto (Benfazeja, 2017), Hystéra (Escaleras, 2018) e De quando estive em Alto-Mar: poemas de afogamento e algumas mortes felizes (Escaleras, 2021). Fez parte das Antologias Poéticas Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2016), Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017), Senhoras Obscenas (Patuá, 2019) e da antologia bilíngue de poesia contemporânea de escritoras brasileiras e cubanas Sem mordaça. Sin mordaza (2021). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.