Coluna | Palimpsesto
A mesa é sempre pequena quando apoia braços, comida e conversas de minha família. Com a morte de minha avó tive a oportunidade de rever boa parte dela, além das muitas histórias dos nossos, apoiadas na memória e, sobretudo, na transmissão oral, carregada de ficção. Um nome sempre me deixa atenta ante essas narrativas polifônicas: Helena. Helena é meu segundo nome, homenagem à minha tia, Maria Helena, que, por sua vez, carregava a força da minha bisavó Helena.
A história da minha bisavó se imiscui a contradições, nunca sei o que de fato aconteceu com ela e com a minha avó. O que sei como “fato” é que minha avó nasceu em João Pessoa e cresceu em Salvador com os irmãos, todos filhos de Helena, mãe solo (à época nem mãe solteira a chamavam, mas nas entrelinhas julgavam-na “vadia”). Lembro-me de minha avó me contar que, em meio aos muitos preconceitos que minha bisavó sofria, o pior era o racismo na própria família. Helena era a “negra da família”. Helena inspirou a personagem Filipa Maria do meu Dança Sueca e, após a conversa entre primas, descobri um novo “fato” sobre minha bisavó que vale um palimpsesto. Ela era filha de portugueses, o que erigia inúmeras especulações, inclusive da sua concepção como fruto de uma relação extraconjugal.
Aqui mostro o trecho de meu romance sem saber desse “fato”.
“Acreditavam que Filipa era adotiva. Ou, ainda, filha de outro. Por mais que meu avô apontasse no álbum de família a ascendência africana, continuavam a distanciá-la do laço que os unia. Titia nunca comentou comigo o quanto a magoaram os comentários dos familiares excluindo-a das lembranças coletivas ao redor da mesa […]” (Dança Sueca. São Paulo: Patuá, 20119, p. 31)
Termino este palimpsesto com esta ferida aberta: a que preço somos um país de miscigenados, onde se sofre racismo dentro da própria família, nosso primeiro contato com o mundo.

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Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger. Mantém uma coluna na revista Vício Velho.