coluna | palavra : alucinógeno
dores de cabeça têm seu trauma em decorrência de uma trama inflamada na linguagem. as palavras ateiam fogo na fala e reagem à infecção da sintaxe quando um poema exerce a hesitação entre som e sentido. dá vontade de extinguir a dor pela ingestão de um fármaco, tal como embaraçar um incêndio. a dissimulação do ácido acetilsalicílico projeta na leitura a engrenagem proteica da confabulação. restringe-se o acerto de contas a uma epifania pela qual a inocência lisa de seu contorno desce como atentado traiçoeiro, provocando o levante gastrointestinal numa possível reação adversa. monique brito avisa que a agressividade do AAS não deve agradar a portinari. será preciso seguir a posologia abaixo.
a violência do AAS não agradaria a Portinari
quando você ingere um comprimido
de ácido
ácido acetil
o salicílico
você inibe suas ciclo-oxigenases
todas elas: a um, a dois e a três
de forma irreversível
irreversível
sabia?
em Moscou, Argel ou Cartagena
suas proteínas morrem
até que outras sejam fabricadas
sabia?
o ácido acetil
o salicílico
parece inofensivo
mas é violento
você acorda com dor de cabeça ou febre, ou ainda uma osteoartrite, ou ainda uma trombose cerebral, ou ainda uma aterosclerose. você não consegue escrever o poema porque a dor, a febre, a inflamação te deixam à parte da língua (jamais da linguagem). você sente, reclama. lembra do comprimido. você agarra a caixinha. você quer o poema, então você arranca da cartela o AAS. você faz do seu corpo um laboratório onde as ações das cicloxigenases são coibidas. quando você ingere um comprimido / de ácido // ácido acetil / o salicílico // você inibe suas ciclo-oxigenases / todas elas: a um, a dois e a três / de forma irreversível.
você pensa nisso de ser irreversível. você cogita que o poema pode ser afetado, que não há poesia sem movimento, que movimento gera calor, e pode haver dor. você se pergunta sobre não poder mais transformar algo em verso. você percebe: não ter retorno significa não imprimir no gesto um enjambement. portinari sabia disso. portinari talvez não tenha tomado o comprimido que inibisse suas cicloxigenases, e versificável esteve enquanto cor e forma na tensão com o que se poderia ser dito por imagem. um poema também é imagem. daí você pondera que a violência do AAS não agradaria a portinari, que era necessário deixar o corpo ser chumbo com a geometria da dor porque não se poderia, decerto, deixar de escutar a encantatória assunção da morte. você se ilumina: morrer numa pintura ou num poema quer dizer deixá-los aparecer como possibilidade.
desde um lugar, um poema é imagem. seja em moscou, argel ou cartagena, o que se entende por proteínas metaforiza as tensões harmônicas nas elaborações fisiossemânticas dos versos. se as macromoléculas estão presentes em tudo que é vivo, vivos estão os poemas no processo de catalisação do som na potência do silêncio, ao se considerar ainda o traço inicial na textura ou na linha que dará nome a uma letra.
a pergunta pelo saber – sabia? – arranja um tipo de ligação peptídica entre as frases, tornando-as complementares pelo corte dos versos, os quais se unem uns aos outros em função da liberação molecular de água. aqui acontece o deságue na intenção de tornar um poema completo em suas cesuras. um paradoxo pertinente àqueles que se juntam com os próprios desfechos. ingerir um comprimido de ácido – o acetil, o salicílico – confere a condição ambígua de deixar que um poema apareça mediante a violência, mas de outra ordem. porque o ácido vai te corroer a instância versificável ao matar suas proteínas, até que outras sejam produzidas.
seria isso, quem sabe, uma negação ao movimento etimológico do verso, no qual se encontra a ideia de retorno, assim como em reverter. você percebe o enamoramento das palavras ao aproximar a originariedade entre a ficção verbal do verso e a intenção da ação de verter (aquilo que jorra, verte, transborda). a sagacidade da linha enjambada está no limiar entre o retorno constante (verso) e seu derramamento semântico (verter). você transvê a irreversibilidade tal como o sepultamento da semente para o nascimento do broto; porque irreversível é o que não infiltra, tampouco retorna em verso.
a farmacologia denuncia a aparência do fingimento. parece inofensivo / mas é violento. o ácido desgasta a mucosa da palavra até que se exprima o poema. o AAS inibe a inflamação, mas o poema, você sabe, nasce desde o incêndio da linguagem. mesmo que você tome uma overdose acetilmente salicílica, o canto se dirá. ele próprio, dito, escrito ou desenhado será o fogo que devastará o laboratório, esse que você vê por onde anda. você carregará o incêndio das vidrarias nas letras, portinari sabia disso, ele sabia que não se podia conter a nevralgia da cor porque ela era sua entrega.
ao ingerir uma aspirina, você desencadeia uma reação adversa à construção. incita a quentura da poesia e potencializa a alvenaria dos versos no estômago das palavras. contudo, não se pode evitar a intoxicação pelas imagens. violência talvez seja a desilusão ante o quebrantamento lógico das paredes e suas mucosas. será necessária uma hidrólise que decepe a cabeça ajuizante de um radical livre – o que tornaria afável o desmembramento ficcional de inundações, responsáveis por alagar semânticas ou pelas brechas na formulação equilibrada do poema. violência está em querer represar a infecção pela ingestão de um antídoto para a inflamação criativa. portinari tinha razão. parece inofensivo, mas é violento.
p.s. Monique Brito é professora associada da UFF e aciona a ligadura entre o químico e o poético. ela carrega o laboratório para onde vai, e assim segue em sua poética sulfocrômica. a corrosão promovida pela Monique alcança a gênese dos ossos mediante a interlocução das várias vozes que nela transitam, atentas para serem ditas num poema. e ela as diz. tomara que continue. o poema “a violência do AAS não agradaria a Portinari” compõe seu recente livro As melhores visitas que recebo no laboratório, publicado pela Oficina Raquel em 2021, mas só em 2022 chega ao público. sigamos na leitura de sua poesia, e me chamem para um café com clorpromazina.
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.