Coluna | Alguma coisa em mim que eu não entendo
Para quem lutou, está lutando e/ou precisa de algum alento, porque a vida coletiva é a complicação nossa multiplicada por outrem, porque pode a poesia ser lava e eletricidade, quatro anos depois e ainda antes, ontem é sempre amanhã pois tudo é hoje e a importância da vida é agora, pelas palavras que não consigo articular, inalcanço três poemas, um à beira do desastre, outro enquanto o pesadelo (lúcido) se desenrola-vá! e mais outro, a arrancar força do tutano que os dentes não têm, sorriso e mordida a desenhar o futuro. Para vocês:
# antevéspera
(para Fernanda Nader Garavini)
antevéspera de eleição:
caminho nos jardins
do museu perto à casa
ainda há jardins
ainda há museus
ainda tenho pernas
embora casa já pareça
palavra (ideia) estranha
deslocada
em ruínas
uma criança
atrás de uma samambaia
escondida
(frágil proteção):
há medo
no rosto dela
(há tanto medo
por esses dias)
estamos brincando
(estamos?)
de pique-esconde
por favor
não me denuncia
denunciar: palavra estranha
na boca de uma criança
acho que aprendeu na tv
tantos escândalos:
fulano furtou um boi
enquanto boiadas passam
sorrio, ocultando
meu próprio medo:
conta comigo
não vou te denunciar
# corpus
eu não trouxe cartazes
nem o megafone
que comprei exato
para ocasiões assim
— e outras pelas quais
meu sangue (de ressaca)
também se encrespa —
porque tampouco
minha voz eu trouxe:
anda perdida
em tantos sopros
de esquecimento
que a carne o corpo
em transe alcançam
não trouxe meu
grito portanto
e nem mesmo hoje
minha simpatia:
não trouxe (muitos) sorrisos
nem muitos abraços
nem olhares convite
e cumplicidade
a cruzarem as pistas
da avenida, me atravessarem:
pedestres de pés alados
não trouxe a fome
de movimentos que cheiro
sobre o asfalto, pela multidão
em meu próprio corpo
em outros momentos
não trouxe muito alento
nem muita esperança
como noutros tempos
— tem sido difícil —
nem nada muito etéreo
— palavras, gestos —
nem qualquer objeto
além da roupa do corpo
mas trouxe precisamente
porque é preciso, isso:
meu corpo. o corpo:
eu
ocupando a rua, a urbe
o tempo talvez
como quem grita, gesticula
empunha cartazes, megafones
e olhares dizendo
não
atento
forte
temendo sim, porque temo
— we’re not that strong, my lord —
mas em riste, existindo
todo o tempo
contra a morte
— e seus consortes
# o músculo do sorriso é o mesmo da mordida
a dentista despoetiza
minha mandíbula:
foi preenchimento?
foi não
e bem sei
quanto dói
essa força do
músculo do sorriso
(outro dentista já
havia reparado)
a mordida também
tem o peso
de mil desejos
e suas angústias
nisso penso
(dentro da música)
frente à luta
tão rente
de outubro
de dois mil
e vinte e dois
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Thássio Ferreira é escritor, autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016), Itinerários (Ed. UFPR, 2018), agora (depois) _(Autografia, 2019) e Nunca estivemos no Kansas (Patuá, 2022). Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Germina, Revista Ponto (SESI-SP), aqui na Vício Velho, InComunidade (Portugal), e outras. Seu conto _Tetris foi o vencedor do Prêmio Off Flip 2019, e seu livro inédito Cartografias, finalista do Prêmio Sesc 2017. Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Mantém página no Facebook e o Instagram