“NÃO ME CHAMAM DE NOME NENHUM”: SOBRE CARTAS A UMA NEGRA, DE FRANÇOISE EGA – RENATA DE CASTRO

Coluna | Sibila


Cartas a uma negra, da franco-martinicana Françoise Ega, chegou ao público brasileiro no ano passado, pela editora Todavia, com tradução de Vinícius Carneiro e Mathilde Moaty. A mim, chegou por meio de duas amigas, leitoras vorazes, que, entre um gole de café e um comentário sobre suas recentes leituras, despertaram meu interesse ao falarem o nome de Carolina Maria de Jesus junto ao da autora antilhana. 

A negra mencionada no título é a escritora brasileira, tantas vezes referenciada exclusivamente como a catadora que escreveu um diário – Quarto de despejo – com papel recolhido do lixo. No entanto, Carolina Maria de Jesus escreveu outros textos, outros gêneros e desejava publicá-los. Para além daquela que redigiu um diário relatando a vida de muita pobreza, a negra em questão foi uma escritora cuja obra ainda precisa ser mais estudada em seus aspectos literários e mais conhecida pelo público brasileiro em geral.

Ler Cartas a uma negra, depois de ter lido a negra a quem se destina, é uma verdadeira experiência de conexões. A primeira delas, que salta aos olhos de todos, é seu caráter de denúncia da relação existente entre a condição da população negra na França e no Brasil e o colonialismo. 

Segundo nos conta Ega, sua motivação para a escrita da obra que resultou em Cartas teria sido os inúmeros relatos que ouvira de outras mulheres também negras – antilhanas, em sua maioria – migradas para a Europa principalmente no pós-guerra. Tais mulheres contavam como eram exploradas pelas famílias brancas, trabalhando em condições análogas à escravidão. A fim de escrever uma experiência real, Françoise decide trabalhar como faxineira – embora, a rigor, não precisasse – e conhecer melhor os abusos que aconteciam no espaço doméstico.

Em maio de 1962, há pouco menos de uma semana trabalhando como faxineira, Françoise Ega descobre Carolina Maria de Jesus na revista Paris Match, em uma matéria que apresentava o perfil da escritora brasileira com alguns trechos da tradução francesa de Quarto de despejo, então recém-publicado sob o título de Le dépotoir. É nesse momento, quando encontra a brasileira, que a antilhana decide iniciar seu registro.

Já no fim do primeiro parágrafo de Cartas, Ega relata que a família para qual trabalhava não a chamava de nome nenhum [[…] ils ne m’appellent pas du tout]. Ela era apenas a negra. Contrariamente a essa invisibilização constada nos primeiros dias de trabalho, a obra inicia-se com uma expressão de concordância seguida de um vocativo: “Pois é, Carolina” [Mais oui, Carolina]. Desse modo, fica estabelecido, desde o começo, o diálogo não com um leitor anônimo, mas sim com alguém nominado, uma interlocutora com quem a emissora se identifica. Isto é, Ega rebate a invisibilização sofrida na função de faxineira com a nominalização da negra com quem se irmana.

Carolina não leu Françoise. Desconfio, no entanto, de que a escritora brasileira gostaria de ter sabido que foi chamada de Carolina, e não de Maria, nome que isoladamente a desagradava, como se perdesse a identidade em meio a tantas marias. 

As cartas são escritas entre os anos 1962 e 1964. O livro não só descreve o modo como as negras eram tratadas pelas patroas brancas que as contratavam para serviços domésticos, como também nos revela o desejo de Ega de ser uma escritora publicada. 

Apesar de não ter o apoio do marido e de mais algumas pessoas próximas, a autora antilhana não desiste de escrever – ainda que com alguma reserva –, entre uma faxina e outra, entre todos os afazeres domésticos, entre a bagunça das crianças: 

Timidamente, eu disse para quem estava ao meu redor: “Estou escrevendo um livro”. Riram de mim. Repeti o meu leitmotiv a compatriotas que me viam rabiscar quando nos encontrávamos, fosse no ônibus, fosse nos encontros dos grupos comunitários. Aos risos, me disseram: Cuide das suas crias”. Houve quem, por pena, levasse a mão à testa. Comecei então a escrever às escondidas […]

Assim como fez Carolina, em Quarto de despejo, Françoise revela-nos as dificuldades que uma mulher negra, sobretudo pobre, enfrenta não só para escrever, mas também para publicar. 

Virginia Woolf, em Um teto todo seu, já alertava sobre a necessidade de se ter um espaço adequado para o desenvolvimento da arte escrita. Por falta de equidade de gênero na produção literária europeia do século XIX, Woolf baseia seu argumento em textos confessionais de autoria masculina:

E o que se conclui dessa imensa literatura moderna de confissão e autoanálise é que escrever um trabalho genial é quase sempre um feito de dificuldades prodigiosas. […] As condições materiais em geral estão em oposição. Os cachorros vão latir; as pessoas vão interromper; o dinheiro precisa ser ganho; a saúde vai sucumbir. […]

Mas para a mulher, […] essas dificuldades eram infinitamente mais descomunais. Em primeiro lugar, ter um espaço próprio, que dirá um espaço silencioso ou à prova de som, estava fora de questão […]

Mesmo um século depois do momento observado por Woolf, lê-se Ega: […] escrevia as últimas frases, Carolina, encostada na máquina de lavar (é preciso encontrar um cantinho tranquilo) […]

Pode-se dizer que ter escolhido Carolina como destinatária foi um artificio literário criado por Françoise, tendo como resultado a fusão de dois gêneros frequentemente confessionais, o diário e a carta. Assim, Cartas a uma negra constituiria um romance epistolar autobiográfico. 

No entanto, para além de uma nomenclatura literária ou uma delimitação textual da obra, é-nos possível também afirmar que escrever um diário com um destinatário é um recurso de quem escreve diário e busca materialmente – ainda que seja uma abstração – desdobrar-se até um outro. Nesse caso, Ega não procura, de fato, um outro distante de si. Ela parte justamente da ideia de que Carolina Maria de Jesus é como ela, chamando-a frequentemente de irmã, o que seria, portanto, na verdade, um espelhamento. 

A prática de escrever diários não é incomum entre escritores, como conta Woolf:

[…] no século XIX, a autoconsciência tinha se desenvolvido de tal forma que se tornou um hábito dos homens letrados descrever o que sentiam em confissões e autobiografias. […] sabemos pelo que passou Flaubert quando escreveu Madame Bovary; pelo que estava passando Keats quando tentava escrever poesia diante da aproximação da morte e da indiferença do mundo.

Do mesmo modo, sabemos o que viveu Françoise Ega ao escrever Le temps des Madras – ainda sem tradução no Brasil. Cartas a uma negra parece, pois, desempenhar também a função de um exercício. Ao escrever as cartas, Ega alenta e encoraja a si mesma:

[…] Terminei meu primeiro livro, só me resta colocar a palavra “fim”, não me convenci a fazer isso, uma imensa apreensão me invade. Enquanto ainda não era um livro, todas as hipóteses me eram permitidas; às vezes, podia imaginar pessoas o rejeitando […] 

Cartas reclama o nome. Ao convocar Carolina, Ega reforça que sua reivindicação é por existir não só como ‘femme de ménage’ (faxineira) – tal qual muitas de suas conterrâneas, a quem defendeu –, como também ‘femme de lettres’ (escritora):

Em um belo envelope com papel timbrado, lia-se “Maméga, Escritora”. Sentei na frente da porta, a emoção me deixou de perna bamba, olhei novamente a palavra “Escritora” do envelope, esfreguei os olhos para ver se não estava me enganando: mas alguém escrevera mesmo “Maméga, Escritora”. 

Françoise Ega, Escritora. 

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1 Maméga é a contração de Madame com Ega.

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Renata de Castro 
( linktr.ee ) é poetisa, professora, tradutora, feminista e doutora em Literatura. Tem três livros publicados: O terceiro quarto (Benfazeja, 2017), Hystéra (Escaleras, 2018) e De quando estive em Alto-Mar: poemas de afogamento e algumas mortes felizes (Escaleras, 2021). Fez parte das Antologias Poéticas Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2016), Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017), Senhoras Obscenas (Patuá, 2019) e da antologia bilíngue de poesia contemporânea de escritoras brasileiras e cubanas Sem mordaça. Sin mordaza (2021). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.