QUANDO O FAROL SE APAGA: LEITURA DE UM POEMA DE ANA MARTINS MARQUES – FÁBIO PESSANHA

coluna | palavra : alucinógeno


no poema Meada, de orides fontela, a gente lê que as mãos buscam o fim / do tempo e o início / de si mesmas. seria uma possibilidade de elas se descobrirem em paralelo com o acontecimento temporal no minúsculo e infinito instante em que tempo e existência se cruzam. as mãos estariam à procura, sólidas quanto à certeza de uma espera. esse poema me levou ao de ana martins marques, o qual pergunta o que fazer agora / com as mãos / cegas? acontece então uma relação não apenas com o objeto cigarro, e sim com o que se desdobra da intimidade que ele evoca, um lugar imaterial. quem sabe, haja alguma semelhança quanto à busca e à esperança, uma dúvida que se alonga, talvez não para conseguir uma resposta, mas para adentrar ainda mais no que não se sabe da cegueira das mãos e o que a gente poderia conceber como tal. 

O que fazer agora
com as mãos
cegas?

o cigarro é parente
do lápis

eram, afinal, gestos para nada
como na dança

(e fico à espera de alguém que coreografe o ato
de acender um cigarro numa praia cheia de vento)

as cariátides
as gárgulas
seriam mais felizes
se fumassem

só amamos de fato
o que serve para nada

mas as mãos mais do que nós
sabem o que fazem –
são desde cedo adestradas
no adeus

só sinto falta de fabricar
minha própria nuvem

e de esperar-te em alguma esquina
fumando em pé
como um farol

as mãos cegas desenham no vazio o mapa para encontros fortuitos. arqueiam como uma cama de gato – aquela brincadeira de criança que trança um barbante entre os dedos – a expectativa de alguém para partilhar o trançado. talvez nem seja o caso de tanta filosofia. tem horas que o pensamento é seco e nos joga na cara a falta de empatia com o que se perde. a gente se pergunta pelo que sobra dessa privação, como será daqui pra frente. fica uma lembrança do cheiro marcante, a ponto de a pele eriçar vontades e as mãos descobrirem outros jeitos de encenar distâncias. 

entre o cigarro e o lápis vinga a analogia pela ocupação. ambos traduzem um tipo de solidão desembaraçada em rascunhos. o cigarro é parente / do lápis e juntos escrevem o anonimato das confissões. tanto quanto o grafite se extingue no risco, o tabaco se desvanece na chama, sem destino a cumprir. há uma destruição erguida no arcabouço da história de quem são próximos. a materialidade de sua consumação está no nada, na fisionomia exercida ante sua consecução. não saberia dizer a proporção entre um e outro na escrita deste livro, o quanto intimizaram alegrias ou lágrimas. o desfecho que cada um encerra radicaliza uma tal construção de ruínas. talvez, assim como as mãos no poema de orides, tentam encontrar o elo de ligação que os reúne ao se procurarem. 

eram, afinal, gestos para nada / como na dança. no tatear da experiência, topo com o repertório das ações que cometi contra o que passou por meu toque. algo como testar o equilíbrio após uma perda ou medir com as próprias mãos a quentura de um corpo alheio. são gestos à toa, fundamentais para a anatomia do esquecimento e suficientes para se riscarem as palavras ao escrevê-las. o tato contém o antídoto para erros fingidos. as mãos arriscam o desenho de uma ausência ao deixarem a figura elidir seu tradicional traçado.

sozinho, penso que as pequenas coisas se tornam imensas na medida em que delas nos perdemos. tentamos desobedecer ao que for previsível. e fico à espera de alguém que coreografe o ato / de acender um cigarro numa praia cheia de vento. ainda que se insista em ir com o fôlego represado entre os dedos, lutar com o fogo contra o vento é uma anomalia que nos imagina em perplexidade. uma luta que se trava pela fagulha, na esperança de se encher os pulmões com ecos. levo o cigarro à boca, como se fundasse o princípio das odes desde a fumaça dançando depois dos lábios. erguem-se imagens como as que sustentam os templos gregos, figuras possantes, repentinas como um nascimento esmaecido. 

abro o livro e leio que as cariátides / as gárgulas / seriam mais felizes / se fumassem. talvez fossem mesmo… isso me lembra aquela banda de rock do final dos anos 1960 que traz na capa de um de seus álbuns a pintura inspirada numa foto de 1928 com mulheres vestidas de anjo fumando cigarros. de alguma maneira, penso na ideia de ausência, em certa parceria que a gente carrega com o ensozinhamento, o que pode ser desdobrado na estabilidade das cariátides e gárgulas sentindo o tempo corroer seu corpo. é provável que a impossibilidade de agarrar com as mãos a ausência esteja presente no oco fundamental que a gente é. 

tateia-se o próprio esvaziamento como se houvesse um destino a ser cumprido. talvez não haja, talvez apenas importe a figura que segue dançando até se desfazer no ar. talvez um pouco de quem observa o gestual nimboso se desfaça junto. talvez não reste ninguém para reconhecer a despedida. quem sabe, poesia esteja no lugar impronunciável do amor, se só amamos de fato / o que serve para nada. quem sabe, assim ficamos livres da serventia, de toda necessidade dos porquês. um prazer tal como emaranhar fumaça nos dedos, porque amor impronunciável é aquele que não se cala porque não se extingue no dizer, porque é potencialmente iminente.

uma janela se instala aberta no descampado da espera. olha-se o longe e tudo que se move esgota a vontade de montar alicerces sob o jeito correto de trazer pro peito o fôlego. descobri que há muitos modos de tragar um cigarro, como se uma infância rebelde corresse à procura de um escândalo proibido. mas é uma descoberta que já nasce antiga, chega atrasada à sabedoria das mãos, que entendem do mundo mais que nós. elas sabem o que fazem – / são desde cedo adestradas / no adeus. essa aprendizagem parece levar bastante tempo para incorporar o que dela não mais há. houvesse um itinerário que confirmasse a partida, que contivesse a chegada. mas não. o que existe é o que se torna. 

viver sem o incêndio movente das substâncias de um cigarro. algo que transita para a inconfidência, que faz perder a parceria na respiração. a língua é escavada antes de a linguagem lhe conferir refúgio, porque talvez essa falta, quase uma impertinência, modele o desejo por aquilo que jamais irá embora. são vestígios de um tempo sem nome para o qual se aponta a artilharia da saudade. se você tentar olhar por fora do campo de visão, possivelmente o que lhe aparecerá será o reflexo de um anseio. 

carrego na leitura a marca de um tempo em que o corpo se desdobrava quando ganhava o céu, embora ainda tente me voltar ao que se torna próximo ao inalcançável. aqui, leitor e leitura se confundem durante as páginas, entre as digitações de uma incorporação. abro o livro mais uma vez. leio. fico. vou junto com estes versos: só sinto falta de fabricar / minha própria nuvem // e de esperar-te em alguma esquina / fumando em pé / como um farol. 

p.s. os poemas de Ana Martins Marques costumam me causar rupturas. pela proposta desta coluna, tento um lugar em que leitores, leitoras e leitura se desarrumem em certa confusão. não sei bem se o que faço funciona. mas o poema, esse sim… funciona de um jeito um tanto intangível no dizer. não se trata de continuar o poema, alongá-lo. isso jamais. ainda é algo sobre o qual não sei muito. o fato é que não contenho o ímpeto de acompanhá-lo e, de certo modo, incorporá-lo, a fim de devolver uma peripécia de linguagem. com muito cuidado e desconfiança, assumo esse risco. então, fica aqui proposta a leitura de um poema presente no livro Risque esta palavra (Companhia das Letras, 2021), da citada poeta mineira.

____________________
Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.