O MEU MANEIRISMO (OU EFEITO RONALDO CORREIA DE BRITO) – JOÃO PAULO PARISIO

Coluna | Sentido


 

1.

Completaram-se quatro anos desde que lancei Homens e outros animais fabulosos (Patuá, contos). Talvez o livro meu que eu mais ame. Borboleta berimbelando no jardim causa furacão do outro lado do mundo. Também às vezes o gotejar de uma palavra engendra um redemoinho engolidor de caravelas. Alguns meses antes do lançamento, eu estava no supermercado comprando umas cervejas pra tomar na varanda com minha mãe quando Ronaldo me ligou: “seu livro é do –” disse a palavra barroca para uma barroca coisa da anatomia masculina.

Ronaldo Correia de Brito, autor de Galileia e Faca, entre outros. Cearabucano, premiado, reconhecido, sincero. Reconhecidamente sincero. Pedira a este figurão que escrevesse a orelha, que lesse o livro pra ver se queria escrever a orelha – outra palavra e coisa barroca da anatomia humana, essa. Agora não restava dúvida. Prosseguiu: “só o primeiro conto, Boneca-de-Pano, já seria suficiente.”. Não disse suficiente para alguma coisa, disse suficiente, de forma intransitiva. Autossuficiente. A meu ver a boa arte é autossuficiente. Me soou ainda mais lisonjeiro, assim. Ele queria saber quem eu era, de onde viera, o que fizera. Um percuciente café, uma clarividente cerveja, para botarmos as cartas na mesa.

Em algum ponto da ligação a frase que me derrubou do céu: “você é um maneirista”. Eu ainda não sabia, o começo de uma epifania. Maneirista pra mim não era elogio, era depreciativo até. Em meu dicionário interior, Maneirismo. s.m.: afetação, artificialismo, fatuidade. Descrédito. Até gostava e gosto de me imaginar barroco, e foi essa a palavra que Ronaldo usou no texto que ficou na contracapa do livro, não na orelha, mas maneirista me doeu, um pouco. Tomamos as cervejas, alguma caipiroska. Falamos menos de literatura que de tudo. No fim ele me disse que eu era um bom personagem, e cada um seguiu no seu uber, com recomendações dele para que eu lesse os livros novos de outros dois contistas da terra por natividade ou adoção: Nivaldo Tenório e Cristhiano Aguiar, “tão diferentes de você”.

Mas esqueci do maneirismo. Dias depois, a centelha, em pleno expediente. Felizmente sou um burocrata em tempo de computadores. Consultei o oráculo sobre maneirismo. Descobri que o próprio Michelangelo foi maneirista em fins de carreira, fato ilustrado inclusive pela cena do Juízo Final na capela Sistina, de corpos inverossimilmente alongados, como se distendidos pelo empuxo gravitacional do buraco negro do fim dos tempos. Isso. Michelangelo teve sua fase maneirista. No fim. 

Alguns meses antes da conversa com Ronaldo, eu conhecera a Itália. Na praça principal de Florença, enfeitiçou-me uma estátua em metal de Perseu segurando a cabeça da Medusa, o corpo do monstro desconjuntado aos pés do herói. O sangue a jorrar indefinidamente do pescoço tinha o mesmo feitio das serpentes do cabelo. Com minha Fuji semiprofissional e aparentemente tão duradoura quanto a estátua, fotografei-a muito, quase de forma compulsiva; meu irmão Cleto é testemunha. Pois bem. Nas pesquisas que fiz sobre o maneirismo após a ligação no supermercado, descobri que o autor daquele Perseu ironicamente petrificado em seu triunfo vinha a ser Benvenuto Cellini, um dos mais destacados expoentes do – maneirismo. 


2. 

As mesmas prospecções me levaram a ter notícia de um autor chamado Arnold Hauser e de seu livro Maneirismo. Corri na Estante Virtual. Quando o livro chegou, era dia dos namorados e eu estava proverbialmente sozinho. Deitei-me com o Maneirismo na rede para fruir a felicidade clandestina da pequena Clarice Lispector quase cem anos antes e a algumas centenas de metros de onde eu me encontrava, num sobrado da praça hoje chamada Maciel Pinheiro e, num futuro incerto mas certo, praça Clarice Lispector.

O texto de Maneirismo foi-me tão avassalador, descadeirante, que minhas pálpebras começaram a tremer como asas de mariposa saindo do casulo. Não sem um pouco de vergonha lembro que chegava a me contorcer durante a leitura, sem perceber que imitava, nada escultural contudo, a forma serpentinata característica da escultura e da pintura maneiristas. É estranho encontrar um traço próprio refletido na arte italiana da época em que os ibéricos atingiram a América, em 12 de outubro de 1492 capitaneados pelo genovês Cristóvão Colombo, cujo retrato com mais probabilidade de ser autêntico foi plasmado por Sebastiano del Piombo, pintor maneirista.

Antes que meu país existisse, reluzia com intensidade inédita uma faceta da subjetividade humana culturalmente herdada por mim. Sou um escritor umbilicalmente ligado ao gênero fantástico e num artigo científico Paloma Salomão Vidal traça, se bem me lembro, um paralelo entre duas correntes anticlássicas, o maneirismo e o barroco, e a literatura fantástica, relampejando sobre minha iluminação. A noite em que Cellini terminou de fundir o Perseu, segundo ele mesmo a descreve em sua autobiografia, coincide com a da criação do Frankenstein-criatura conforme se transmitiu ao imaginário coletivo: tempestade, raios, paroxismos da expectativa. Até mesmo Da Vinci entra no cômputo dos que beliscaram o fantástico-maneirismo. Dado momento passará dos desenhos fiéis aos rostos monstruosos. Vejamos o que disse desta arte: “O desenho é de tão grande excelência que não só explora as obras da natureza mas uma infinidade de outras que estão para além delas”. 

Me aprofundando nas páginas de Maneirismo, tive essa sensação poucas vezes conhecida na vida de um ser humano: um reencontrar-se que é um superar-se, um retornar a onde nunca se esteve. Descobria novos mestres: El Greco, Hyeronimus Bosch, que eu mencionara num conto de Legião anônima, Arcimboldo, que aparece num poema de Esculturas fluidas, Benvenuto Cellini. E Tintoretto, Tintoretto! Desenvolvi um interesse maior por escultura e pintura, lembrei que meu livro de poemas se chama Esculturas fluidas (na época eu pensava em publicar um novo que se chamaria Fotografias de fogos-fátuos). Segundo Hauser, Shakespeare e Cervantes seriam nomes antes maneiristas que renascentistas.


3.

Já me sentindo um tribuno da pátria maneirista, decretei em foro íntimo que o maneirismo representara a emancipação, a emancipação não, o grito de independência dos artistas. Era o primeiro grande passo no seu processo coletivo de individuação. Sintomático: Benvenuto Cellini inscreveu seu nome na tira que corta o tronco de seu Perseu (il mio Perseo) e foi um dos primeiros sujeitos a escrever uma autobiografia, considerada a melhor, mais picante e fantasiosa da época (um dia hei de conseguir uma cópia). 

Cellini afirmava sua vida, sua identidade, decidiu falar de si em primeira mão. Por que esperar sua pessoa e sua memória esfumarem-se para que quem sabe um dia um incógnito no futuro tentasse reconstituir as formas e curvas de seu destino com informações de segunda mão, com ouvirfalares? Não, ele mesmo seria o ourives do testemunho de sua vida. Declarava-se em contraste com o fundo da época, não era apenas um artífice anônimo a serviço de um nobre patrocinador. Entenda-se: era-o, mas não apenas. Seu mecenas tinha nome e sobrenome, Cosmo de Médici. Ainda assim ele sacudia o jugo da subalternidade, não era um prostituto do poder. Pois também as classes não tomam consciência de si e sua distinção? Também as classes se individuam. Maneiristas do mundo, uni-vos! Maneiristas do mundo, dai-vos as mãos!

Tive pensamentos arrojados: sem detrimento dos renascentistas, os maneiristas haviam sido em arte os primeiros senhores da sua própria maneira, à sua própria maneira, eis a etimologia do termo. Donos da própria mão, do próprio gesto, agora sim criador. Reivindicavam-se. Tinham compreendido a dignidade do artista. Creram ser o artista o príncipe de uma ordem supraterrena, conquanto seu avatar humano pertença à ordem sublunar na qual depende dos príncipes deste mundo (fica aí patente a espécie de dívida que tem o romantismo para com essa corrente predecessora). Sendo os artistas a vanguarda do Espírito, tratava-se de não menos que um despertar do ser humano, de dentro do ser humano sido. Romper casulos.

O homem que renascera adormecido, agora despertava. Os maneiristas tinham fundado a modernidade. Com seu Perseu de bronze, Cellini a cunhara. Ocorreram-me, concorreram-me até ideias extravagantes, visões blakeanas. O embate político entre a direita e a esquerda seria, sim, cósmico, corresponderia ao enfrentamento ou contradança entre os espíritos clássico (palavra que não por acaso vem de “classe”, no sentido de classe social mesmo) e anticlássico. Tensão de forças necessária, sem dúvida. Uma tendência se liga ao que é meridiano, normal, regrado, lúcido, outra ao que é excêntrico, maravilhoso, nebuloso, extático. Tirem a uma árvore seja a simetria seja a assimetria, ela não se sustenta. O mesmo para a Árvore dos Mundos.

E o maneirista quer criar mundos, tem o afã da demiurgia. Demiurgo, em grego, quer dizer artífice, oleiro, aquele que dá forma ao barro com sua mão, à sua maneira. É bem verdade, com o tempo o maneirismo degenerou em amaneiramento, artificialismo frívolo, mas não é esse o destino de todo movimento ou corrente, dissipar-se, ceder lugar a outras organizações de forças, e ao mesmo tempo permanecer, pairar sobre as águas da história como um arquétipo fantasmagórico? Isso é trabalho para Arnold Hauser, seus sucessores, já que não podemos contar com ele desde 1978. Fato é que graças a uma palavra que me pespegou à distância Ronaldo Correia de Brito, com quem pouco falei desde aquela época, tive um significativo advento na compreensão de minha identidade como artista. Tem razão, Ronaldo, eu sou um maneirista. Encerro com alguns trechos do Maneirismo de Hauser:

“não só rejeita a realidade natural, não só a distorce mas até certo ponto a substitui por formas completamente imaginárias ou abstratas. Em vez de copiar objetos da experiência real, interpretando-os ou descrevendo e analisando seu impacto, procura criar novos objetos e enriquecer o mundo da experiência através de artefatos autônomos”

“defrontamo-nos com um desvio consciente e deliberado em relação à natureza, ou seja, com um abandono da fidelidade a ela, que não é baseado nem na falta nem na limitação da habilidade artística”

“O maneirismo nasceu de um anseio de expressão que, a fim de ser valorizado, renunciou deliberadamente ao quadro familiar e conhecido das coisas”

“Em sua estrutura audaz, irreal e fantástica, os detalhes são frequentemente apresentados com rara agudeza e extremo realismo, mantendo assim estreita semelhança com a estrutura dos sonhos”

“Como é que o artista realmente representa uma coisa, e como é que ele representa a beleza? O problema agora era: como é possível a criação artística como uma forma de atividade mental?”

“o artista criava, não segundo, mas como a natureza.”

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João Paulo Parisio (@jpparisio), nascido no Recife em 4 de setembro de 1982, é autor de Legião anônima (contos, 2014, Cepe editora), Esculturas fluidas (poemas, 2015, Cepe editora), Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018, editora Patuá) e Retrocausalidade (romance, 2020, prêmio Pernambuco, Cepe editora), obras que o situaram entre os expoentes da literatura brasileira contemporânea. Apontado pelo crítico José Castello como “um dos principais nomes da nova geração de narradores brasileiros”, tem ainda textos veiculados em revistas, jornais e sites especializados.