Coluna | Sibila
A vida é divina porque se divide e se multiplica a si mesma
Ser vivo é ser parte da divindade1.
Cecília Vicuña foi-me apresentada por um ex-aluno que, há pouco mais de um ano, migrou para Colômbia. Em uma visita a um museu de Bogotá – cidade em que Cecilia viveu por alguns anos da década de 1970 –, ele viu uma exposição sobre a escritora e me enviou uma mensagem com um de seus poemas.
Alegrei-me de imediato com o fato de ele se lembrar de sua antiga professora e mais ainda por se lembrar de meus gostos literários. Comecei, então, minhas buscas e logo descobri que Vicuña não é completamente desconhecida do público brasileiro, ela foi umas das autoras presentes nas mesas da FLIP de 2021.
Cecilia Vicuña é uma poeta chilena. Digo poeta, pois, embora também se dedique muito às artes plásticas, às artes visuais e às performances, segundo ela mesma, tudo que faz é poesia. Uma poesia que não se estrutura exclusivamente de palavras, mas sim de forças.
No entanto, em muitos de seus poemas feitos de palavras – pois é dessa poesia literária, no sentido estrito de littera, letra, que se pretende tratar aqui –, Vicuña faz questão de desconstruí-las a fim de nos convidar, como leitores, a pensar sobre elas e seus encantamentos. Cecília brinca de poesia:
Para significar o Ocaso
e o Ocaso não é, por sua vez, um Acaso
em que o Caso prefere dizer
O….
para deixar abertos os casos
que seguirão o sol
ao outro lado do Ocaso?
Para significar el Ocaso
Y el Ocaso no es a su vez un Acaso
en el que el Caso prefiere decir
O….
para dejar abiertos los casos
que sucederán al sol
al otro lado del Ocaso?
É nesse mesmo lugar de repensar as palavras, de fuçá-las e nos fazer perceber sentidos novos, onde se encontra a criação. A poesia de Vicuña conecta-se ao ancestral e ao divino, o que inclui a natureza e, por sua vez, os seres humanos.
Em Diz vida, uma reflexão em três tempos, Vicuña nos revela que:
Na poesia uma palavra insinua sua própria desmontagem.
Entrar nela é voltar a tocar a criação.
Para Cecília, a criação poética é uma forma de acessar a criação divina, pois que:
a palavra é a adivinhação
e advinhar
é averiguar o divino
la palabra es la adivinanza
y adivinar
es averiguar lo divino
A palavra é invenção de mundos realizáveis cuja criação já se deu. A poeta captura, explora algumas das possibilidades na língua que as gesta. Assim como as fiandeiras, como as Moiras tecendo os fios das vidas humanas:
O fio é a linguagem […] A tecelã vê sua fibra, como a poeta, sua palavra. O fio sente a mão, como a palavra, a língua.
El hilo es el lenguaje […] La tejedora ve su fibra como la poeta su palabra. El hilo siente la mano como la palabra la lengua.
A palavra sente a língua que a fia in abstrato, a fonte que a alimenta, o verbo que a canifica; como também sente a língua concreta, músculo e sangue, que a articula sonoramente. Assim, a poesia é divina, mas o poema é orgânico:
O poema
é o animal
Afundando
a boca
No manancial.
El poema
es el animal
Hundiendo
la boca
En el manantial
O poema faz um esforço inglório e impossível de trazer a criação integralmente à luz, de pari-la sem as perdas da queda:
Era seu não ser nada ainda, seu ‘not yet’
o que me atraía
Seu ser ‘quase’ uma borda, um
‘a ponto de acontecer’
Nesse estado me mantinha, buscando uma
forma antes da forma
A forma não nascia de uma ideia
Era a ideia se dissipando.
Era su no ser nada aún, su ‘not yet’
lo que me atraía
Su ser ‘casi’ un borde, un
‘a punto de suceder’
En ese estado me mantenía, buscando una
forma antes de la forma
La forma no nacía de una idea
Era la idea desvaneciéndose.
A poesia de Vicuña reside na casa de Eros, pois que não há criação dissociada de erotismo. O divino em seus versos é natural, não é sobrenatural. Isto é, não está acima da natureza. O divino é também a natureza, cuja linguagem que conecta os seres é erótica.
Nos versos finais de Luxumei, lemos um sujeito poético angelical – divino – com a pélvis – humana – em chamas:
[…]
Sou de quatro patas
preferencialmente
os ramos
sairão de mim pela pele,
sou obrigada a ser
um anjo com a pélvis
em chamas.
[…]
Soy de cuatro patas
preferentemente,
las ramas
me saldrán por la piel,
estoy obligada a ser
un ángel con la pelvis
en llamas.
Essa é a função que se impõe sobre a poeta, ser um anjo – mesmo em queda, visto que tem o fogo da humanidade, ainda é anjo –, mensageira que revela a criação na carne da palavra. “Claro, um poema não muda o ‘mundo’”, diz-nos Cecília, “mas pode mudar a visão do mundo”. Em consequência, acrescento, pode nos fazer repensar a visão ordinária da natureza humana.
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1 Os versos em português, sem o original correspondente em espanhol, vieram de Palavrarmais, com tradução de Ricardo Corona, editado pela Medusa em 2017.
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Renata de Castro ( linktr.ee ) é poetisa, professora, tradutora, feminista e doutora em Literatura. Tem três livros publicados: O terceiro quarto (Benfazeja, 2017), Hystéra (Escaleras, 2018) e De quando estive em Alto-Mar: poemas de afogamento e algumas mortes felizes (Escaleras, 2021). Fez parte das Antologias Poéticas Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2016), Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017), Senhoras Obscenas (Patuá, 2019) e da antologia bilíngue de poesia contemporânea de escritoras brasileiras e cubanas Sem mordaça. Sin mordaza (2021). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.