A IRONIA NARRATIVA NO POEMA DE MARIA FIRMINA DOS REIS – FÁBIO PESSANHA

coluna | palavra : alucinógeno


despencar por cima do que impedisse a voz de se dizer e então atropelar a proibição, uma constante num ambiente racista, escravista. sob essa referência e ao se considerar o reflexo dessas dificuldades na prática da escrita poemática, a resistência pode elevar a criatividade ao transbordamento necessário, cuja ironia se apresenta muito potentemente. se uma frase pudesse… pudesse extrapolar o que a imposição da lei baliza. mas qual? quando uma lei? poder. não poder. uma condição de limite tensiona o lugar da frase no corpo mais que materialmente, na fase do corpo antes, talvez, da sua libertação. mas quando uma lei? quando um corpo? deus? o poema pode libertar? maria firmina dos reis escreve desde um contexto de silenciamento em que a lei e a religiosidade brancas imperam. aqui em pauta está um poema, pelo qual se instiga uma movimentação por cuja dissimulação irônica parece ocorrer o enfrentamento contra a opressão de uma tal lei divina.

Ah! Não posso!

Se uma frase se pudesse
Do meu peito destacar;
Uma frase misteriosa
Como o gemido do mar,
Em noite erma, e saudosa,
Do meigo, e doce luar;

Ah! se pudesse!… mas muda
Sou, por lei, que me impõe Deus!
Essa frase maga encerra,
Resume os afetos meus;
Exprime o gozo dos anjos,
Extremos puros dos céus.

Entretanto, ela é meu sonho,
Meu ideal inda é ela:
Menos a vida eu amara
Embora fosse ela bela,
Como rubro diamante,
Sob finíssima tela.

Se dizê-la é meu empenho,
Reprimi-la é meu dever:
Se se escapar dos meus lábios,
Oh! Deus, – fazei-me morrer!
Que eu pronunciando-a não posso
Mais – sobre a terra viver.

que fosse uma frase. uma frase que debandasse do peito a interdição. fosse um intervalo do silêncio, o período sobre o qual ficasse isento o encontro entre letras e sentido. fosse ela, a frase, misteriosa / como o gemido do mar e explodisse a pulsação até se fazer levantar a interlocução do corpo mediante a história cardíaca dos batimentos. fosse o atabaque a máquina que impulsionasse o sangue para depois da evocação e assim fruísse o solavanco da sentença que anoitecesse junto às águas e seus afogamentos. que mesmo assim, doce fosse o desfecho da luz sobre a tarde, e abrisse o enredo para o enigma da palavra nascida em dívida com o que se decreta. embora estancada estivesse a possibilidade ante o desejo do peito que não entende de legislação.

a fala. ah! se pudesse!… mas muda / sou, por lei, que me impõe deus! esquivam-se as sintaxes perante a semântica apreendida desde uma imposição. a lei divina, o lugar ambíguo entre o dizer e o calar da frase maga, que resume no feito largo do impossível o desejo pelo dizer. o poder que a tal frase carrega, e também os versos do poema, concentram o encanto da linguagem, que embora sofra de privação divina – e, a gente sabe, tem mais a ver com o patriarcado escravocrata – acontece na língua. no entanto, ainda que a lei possa aqui dizer esse lugar impalpável sobre o qual não haveria solução, não há acatamento de referida imposição. 

escrever um poema, um livro de poesia – Cantos à beira mar (1871) –, e antes um romance – Úrsula (1859) – mostra que a lei vigora desde a ironia presente na vida vivida desde a escrita. nesse sentido, ironia se refere ao questionamento, um modo de trazer para o texto o exercício dialético entre o dizer e a realização desse dizer como obra, ao se considerar o princípio grego do termo (eironeía, que significa questionar, perguntar). pelo âmbito irônico da poesia, exprime-se o gozo dos anjos, / extremos puros do céu num movimento de dizer não dizendo.

o desejo pela frase impedida acontece tensionalmente, quando na disrupção do poema tal desejo comparece como anseio: meu ideal inda é ela. o entretanto é retirado do gramatiquês conjuntivo ou adverbial para assumir a quebra de uma via que poderia ser a comum. mas não é. o poema irônico ocupa a potência pensante ao assumir o consentimento entre o que se diz e se contradiz numa complementaridade ambiguizante. sutilmente a voz poética recoloca uma posição, isto é, se o andamento corriqueiro do dizer obedeceria à lei impositiva, há uma desobediência pela ocupação do dizer, empreendida de forma negativa. a negatividade do não poder dizer afirma a enunciação, ainda que de maneira dissimulada. a frase interditada rearruma sua própria condição frasal no empenho do dizer irônico, pensativo, resistente. o poema em si é exposto num silêncio de estilhaços.

como rubro diamante sob finíssima tela, comparece nessa imagem a dureza frágil da pedra. o calor vermelho da frase que quer se destacar do peito não permite que fique por completo oculta a fala, ainda que se veja no poema explícita aquiescência. mais vale o implícito, e nesse afinco debochado o silêncio é muito e causa bons estragos. compõe-se o enredo sardônico do enunciado que se diz no retirar-se. vê-se a narrativa poética de uma voz sutilmente inflamada, na medida em que dizê-la é meu empenho, / Reprimi-la é meu dever: / Se se escapar dos meus lábios, / Oh, Deus, – fazei-me morrer! 

na fronteira entre o empenho e o dever reagem as palavras tornadas verso. a pronúncia da frase que detivesse o gozo dos anjos como um ideal resguarda o aporte para o céu ante uma condição: se dos lábios fugir um fonema que seja, já era, a morte comparece seguindo o questionamento performático da ironia. afinal, a morte junto à vida se complementam enquanto imagem complexa desdobrante. apesar da súplica dorida pela extinção caso a frase escapasse, parece ainda ser essa uma sacação do artifício emulador da intenção. por um lado, evidente fica o cumprimento da lei, a naturalização de uma condição inferior pelo tolhimento do dizer; por outro, apesar da ciência desse empecilho tão na pele entalhado, não deixa a voz de se fazer crítica, ocupando astuciosamente o entredizer a partir da condição repreensora pela qual se manifesta. nessa autorrepreensão, a frase vedada do poema comparece no ocultamento. ou seja, não como frase em si, num determinado dizer; mas ao deixar o poema nascer, empreende uma resistência tácita, necessária para se criar uma possível recusa irônica.

p.s. tenho que confessar que só ouvi falar da educadora e escritora maranhense maria firmina dos reis com a flip 2022, na qual foi a autora homenageada. daí, diante da esperança de contribuir um pouquinho que seja com a divulgação de sua obra, trouxe cá para o nosso cantinho de euforia palavral o poema “Ah! Não posso”, publicado em Cantos à beira-mar (1871), o qual em mim repercutiu muito fortemente irônico. mas ironia no sentido do questionamento, conforme mencionado acima, segundo a etimologia de tal termo.
o fato de escrever o romance Úrsula (1859), a narrativa curta Gupeva (1861) e o já citado livro de poesia Cantos à beira-mar (1871) demonstra grande força e assunção de um dizer muito autônomo, apesar de todo apagamento que uma mulher negra poderia sofrer, tendo vivido numa época cuja escravidão ainda estava em voga – apagamento que infelizmente vemos ainda nos dias de hoje. por isso, mediante essa intensidade, ter me deparado com um poema que trata exatamente da retaliação desse dizer, pareceu um exercício da ironia em seu aspecto questionador, não havendo como deixá-lo de lado.

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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.