Coluna | Sentido
A arte imita a vida e a vida, com complexo de inferioridade, não ousa ser-se, por achar que configuraria plágio e pretensão. Não é realismo tirar a tudo o verniz. O dente tem esmalte por natureza. Não nos permitimos a intensidade, o elã, o glamour realíssimos de ser e de ser assim ou assado. Estamos ao fundo de nós. No porão do Cavalo de Troia. Para penetrar a Cidadela do Real, é preciso sair ao sol, e a armadura brilhar.
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Nunca mais quero te ver por enquanto.
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Entender-se é desarmar uma bomba.
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Requisito do escritor: uma atenção levitadora. Outro: ver o contingente onde só parece haver o necessário.
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O ego e a próstata: ambos funcionam melhor se não estiverem inflados.
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Amor é o que redime todo o passado, porque esse desembocou naquele.
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O estilo de Jorge Amado não é naive, é mascavo.
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Coisa boa é um discurso indireto livre, leve e solto.
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O Farol de Alexandria era a Biblioteca.
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Dor é dor.
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Somos contos que o universo se conta.
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A esperança é inamovível. Não se pode removê-la, ela só pode quebrar.
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Com uma lucidez devastadora, brilhar para a morte.
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Há algo de divino na parcela do universo que toma consciência de si.
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Leão é feito de carne de gnu.
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Nada está mais próximo do direito que o avesso.
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Se houver um sentido, qual o sentido do sentido?
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Filhos de sangue, de Ocatvia Butler. Esse conto expandiu, reavivou minha consciência trágica da vida, necessária para que ela seja real. E só o real pode ser alegre. Ela cria um alienígena que tem uma pessoalidade como a nossa. Refletindo-a, revela-a.
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Um animal é profundamente coerente. Mesmo se houvesse um animal traiçoeiro, ele seria sempre traiçoeiro. Sem falta. Se imprevisível, previsivelmente imprevisível. Só o ser humano é incoerente. O que nos leva à questão: são a razão e a irrazão siameses, saldunes?
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A realidade é algo em que às vezes emerjo, incandescente.
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Eu vivo da literatura (porque ela me alimenta) e sobrevivo do serviço público (porque ele paga meus livros).
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Reconhece-se o egoísta pela incapacidade de renunciar ao prazer de cantar a música para que os outros possam escutar a voz do cantor.
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Talvez isso seja misticismo: deixar o íntimo devir pairar fora da linguagem.
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O medo não cede à percepção de sua própria incoerência.
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Os lugares-comuns não chegaram lá por acaso.
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Tratar o outro como um robô e esperar dele o mesmo não é profissionalismo, é desumanização.
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O impressionismo tem a capacidade de oferecer um vislumbre de uma realidade mais funda encrustada nessa mesma. Seria mais o contrário. A baleia não é parasita da craca, nem o tubarão das rêmoras, nem o macaco da pulga, nem a Terra dos humanos.
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Parentes acham que brigam pelas suas diferenças, em geral superficiais. Na maioria dos casos brigam por serem profundamente semelhantes, peças que não se encaixam.
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Um filme todo em câmera lenta.
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Sem senso histórico não há perspectiva de si.
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Um sentimento florestal da vida.
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Cobogós na forma da letra Aleph.
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Melhor o óbvio denso que o esquipático ralo.
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João Paulo Parisio (@jpparisio), nascido no Recife em 4 de setembro de 1982, é autor de Legião anônima (contos, 2014, Cepe editora), Esculturas fluidas (poemas, 2015, Cepe editora), Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018, editora Patuá) e Retrocausalidade (romance, 2020, prêmio Pernambuco, Cepe editora), obras que o situaram entre os expoentes da literatura brasileira contemporânea. Apontado pelo crítico José Castello como “um dos principais nomes da nova geração de narradores brasileiros”, tem ainda textos veiculados em revistas, jornais e sites especializados.