SE VOCÊ TEM 43 ANOS, NÃO LEIA O CADERNO PROIBIDO DE ALBA DE CÉSPEDES – RENATA DE CASTRO

Coluna | Sibila


 

[…] não sei quais sentimentos poderiam resistir a uma análise impiedosa, contínua; nem quem, vendo-se em todas as suas ações, poderia ficar satisfeito consigo mesmo.

Caderno proibido foi publicado como livro em 1952, na Itália. Muito bem recebido pelo público, a autora justifica seu sucesso ao fato de as pessoas se identificarem com a protagonista Valeria: “Porque para fazer outras coisas precisa-se de muita coragem, para dizer vou embora de casa, para dizer vou fazer meu trabalho, então ela ficou! Valeria era insegura, como a maior parte das mulheres. […] Para mim, Caderno proibido é o livro mais pernicioso, sob certos pontos de vista. Mas, para os leitores, é o mais confortador, porque diz pronto, é preciso ficar […] Caderno proibido é o livro que conforta quem se sente fracassado.”  

De fato, é um livro pernicioso, não é um livro que conforta. Dando-me o direito de discordar da autora, é um livro que deixa qualquer pessoa ordinária – como os personagens do livro, ou seja, possivelmente todos seus leitores – desconfortáveis. 

Eu sou ordinária. Assim como Valeira, tenho 43 anos. Somando meus dois casamentos, também tenho duas décadas no lugar de esposa. Também uso a escrita de diários como forma de buscar minha identidade tão solapada – como a de todos – em meio aos papeis sociais que preciso desempenhar. Não, Caderno proibido não me confortou em nada. Provocou-me a pensar, a repensar, a ruminar detalhadamente uma série de escolhas que fiz na minha vida enquanto Valeria perscrutava a dela.

Não é um enredo que tem como tema o fracasso. É um enredo que tem como tema a vida. E a vida, deixe-me dizer o que penso, é um punhado de frustações com algumas poucas alegrias. Claro, sempre depende da perspectiva, porém é certo que apenas coragem não protege ninguém das dores do existir. 

As pessoas fazem as escolhas que podem suportar. Valeria ficou na vida que construiu não por covardia. A fala de Alba de Céspedes acima é muito dura. Para ficar, Valeria precisou de muita coragem. Manter-se no papel que ela escolheu ainda jovem era-lhe tão difícil quanto fugir dele. 

Dentro da narrativa, Clara, amiga de juventude de Valeria, é quem atua como contraste, uma mulher que decidiu se divorciar, que se permitiu viver sexualmente livre e batalhou por uma carreira. No entanto, sentia-se perdida com frequência e admirava o que ela entendia como objetivo em Valeria, a certeza desde jovem de que ser mãe e esposa eram seus papeis e que isso bastava.

Ter escolhas pode ser muito assustador. Não ter escolhas pode ser reconfortante, pois que sempre é possível o sentimento de autocomiseração. Culpar outrem é sempre uma forma de desculpar-se a si mesmo. 

Por meio da escrita, Valeria toma consciência de que sua autopiedade não se justifica. Ela começa a escrever o diário a fim de não desaparecer em meio a seus papeis sociais, entretanto o encontrar-se consigo é uma experiência de morte, pois é inevitável o aniquilamento da imagem que se tinha de si antes do cair das máscaras.

E Valeria vê tudo: como ela mesma abriu mão de sua sexualidade e de sua individualidade pelo papel de mãe. Ela se dá conta que negligenciou seu casamento. Como não poderia deixar de ser, suas escolhas influenciaram as escolhas de Michele, seu marido, que também se viu no papel de provedor, de pai e que precisou lidar com a impossibilidade de perseguir objetivos da juventude. A libido de Michele se esvaiu paulatinamente e foi encontrar descanso na leitura de jornais e em Wagner – não gratuitamente. 

Valeria e Michele compõem um casal de um período de transição de comportamento no pós-guerra. Seus filhos também. Riccardo entende a mulher como um ser submisso ao marido, e sua irmã Mirella percebe-se como uma mulher livre, que vê o amor como uma parceria e não como uma relação de poder. 

Por não ter conhecido o conceito de autonomia ao longo da vida, Valeria sentia que tudo que Mirella fazia a afrontava.  A partir do momento em que começa a escrever, toma consciência de que tinha autonomia para fazer novas escolhas.  Valeria não concluiu que era preciso ficar – e abrir mão de um novo romance em que talvez pudesse deixar sua sexualidade aflorar ou abrir mão de recomeçar a vida –, ela decidiu que queria ficar, ela escolheu. É preciso coragem, oras! 

Quanta coragem Valeria não precisou para se anular como mulher, para desempenhar o papel de mãe – que socialmente era cobrada –, para acumular o trabalho doméstico e o trabalho no escritório a fim de aumentar a renda da família, para deixar a oportunidade de se sentir amada e desejada novamente depois de décadas, para deixar de existir como uma individualidade, para queimar o diário e com isso matar sua consciência, suicidar-se?! 

A mim, parece que o entendimento do que venha a ser coragem, covardia, fracasso e sucesso é algo subjetivo e impalpável. Ainda que algum psicanalista me diga que se goza com a dor – com que concordo plenamente –, nenhuma escolha possível para Valeria seria pouco dolorosa, visto que a vida é inescapavelmente uma chaga que se abre repetidas vezes até a morte. 

A História está aí para nos mostrar que o leitor de hoje que pode vir a julgar Valeria – e também Michelle e Riccardo – como covarde e fracassada, iria a considerar uma heroína virtuosa há alguns séculos. Como com quase tudo – senão tudo mesmo –, nossa perspectiva sobre coragem e sucesso tem mudado com o tempo.

De qualquer forma, nós mulheres somos todas, em alguma medida, valerias. E somos muito corajosas apenas por estarmos vivas, por acordarmos todos os dias e sermos obrigadas a fazer escolhas – incluindo não ver, não saber. Até não escolher é escolha, é dar a outrem o pesado poder que era nosso. Somos muito corajosas por diariamente tentar equalizar todas as expectativas que são lançadas sobre nós, porque não somos suficientes como mulher, como mãe, como esposa, como trabalhadora, como indivíduos donas de nós mesmas. 

Se na década de 50, os leitores poderiam concluir que “é preciso ficar”, hoje se julga Valeria por não ter ido. Se eu fosse você, tomaria muito cuidado com esse livro. Se você se conectar com qualquer um dos personagens – até com os secundários – não vai poder tacar fogo na sua memória como Valeria faz com o caderno. 

Lembre-se: é uma escolha.

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Renata de Castro 
( linktr.ee ) é poetisa, professora, tradutora, feminista e doutora em Literatura. Tem três livros publicados: O terceiro quarto (Benfazeja, 2017), Hystéra (Escaleras, 2018) e De quando estive em Alto-Mar: poemas de afogamento e algumas mortes felizes (Escaleras, 2021). Fez parte das Antologias Poéticas Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2016), Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017), Senhoras Obscenas (Patuá, 2019) e da antologia bilíngue de poesia contemporânea de escritoras brasileiras e cubanas Sem mordaça. Sin mordaza (2021). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.