coluna | palavra : alucinógeno
acordo fechado. o negócio é assim mesmo. um fala e o outro também. e a gente vai se escutando ao mesmo tempo, porque escutar não pode se reduzir à audição. o corpo todo se entrega à devoção de estar e ser com o outro. se considerarmos que de certa forma tudo são palavras, então tudo também se torna escuta. o poema – um gesto escrito, uma audição falada – traça o desenho do transbordamento pelo qual humor e rumor se encontram ou, mais provável, estão desde sempre juntos quando se percebe tal envolvimento no andamento cíclico dos versos. mas sempre sobra alguma coisa do que não se disse. não por esquecimento apenas, e sim porque na tramitação do argumento vigora tanto a perda quanto o ganho. estar num poema – ou com ele – é um pouco isso. conserva-se o possível dentro do impossível da linguagem. uma aliança que parece se replicar no poema de simone brantes.
Tratado da argumentação
De rumor outro poeta pensa com razão
mas para mim o poema é uma questão
de humor
porque quando de dentro de uma pedra o poema
acena imperfeito
ou de dentro do espaço exíguo da sola
de um sapato onde também pode estar
meio sem jeito
ou de dentro das rodas
dos carros que rolam sobre aquela pedra
dentro dos quais viajam
passageiros que não pensam
em coisas que tais
(quintais, eis o rumor)
mas em outras mais próprias
àquela hora
de onde também o poema de qualquer modo
sai
o poema toma o lugar do mundo
onde o mundo é seu único argumento
mais claro e evidente
na argumentação acontece a troca, o apreço numa negociação imaterial. e não se trata de uma argumentação qualquer; é “a” argumentação, conforme aponta o título do poema, aquela que considera a tensão entre rumor e humor, quando pelo humor o poema se desdobra nas e nos poetas. o poema arranja as nuances narrativas dentro do aspecto desembrulhante da voz que o escreve, e sempre coletivamente já que num poema o singular é múltiplo. afinal, o vozerio de quem ocupa uma escrita poemática traduz o arquipélago existencial dos que se põem ao exercício do poetar.
há uma proveniência no modo como o poema se apresenta ao começar com a preposição “de”, a qual tem em uma de suas acepções etimológicas o sentido de procedência. há um lugar anterior, tanto que a impressão é a de chegar ao poema como se já estivesse começado. a gente o acessa flagrando sua eternidade. ou seja, seu começo não se dá como ponto de partida, tampouco seu fim ocorre como destino cumprido. a correlação cíclica entre essas perspectivas é simultânea porque este poema da simone está sempre começando tanto quanto acabando. em sua proveniência está sua sucessão e vice-versa, ao se perceber que: de rumor outro poeta pensa com razão. assim, acontece uma frase já começada desde antes, um modo de trazer para o texto a itinerância verbal, o não-começo-nem-fim de uma instância imagético-situacional marcada por uma palavra – de – que encerra a ideia de originariedade, levando-nos a refletir a pluralidade pela qual “outro” poeta se faz presente no resquício do rumor. com isso, a gente pondera junto, tanto em companhia da razão quanto por dentro dela. a ambiguidade, por si, quebra a dureza da racionalidade e empreende muito sutilmente o fluxo movente do poema.
é possível entender humor como um estado de espírito, a maneira pela qual se reage ao mundo na constituição de realidades. mas desde a leitura de sua etimologia (em latim significa fluido) humor também diz respeito àquilo que nos constitui e, de certo modo, nos orienta em nossa singularidade. a particularidade de cada pessoa é excêntrica, o que faz sentido ao pensarmos por desdobramento na alteridade que nos é. nosso oceano interno, os líquidos (sangue, bile, fleuma) aos quais eram atribuídos o ajustamento físico e emocional das gentes. dá para se arriscar a dizer que descentralizar não é apenas sair do centro, mas carregá-lo junto, tornando central qualquer posicionamento de onde se fale.
por outro lado, em se tratando de rumor, pode-se considerar aquilo que fica de uma experiência. o rumor como o ruído do poema, o esquivo de uma escuta, o coração que pulsa antes da cadência cardíaca; portanto, o risco, mas não o meio. isso que fica também é memória, o espaço onde algo acontece no acolhimento temporal, as quintas, os quintais. vivo, o poema acena imperfeito do interior de instâncias até então inanimadas. tal como a borda que descobre o fundo ou a margem que inventa o fluxo, o poema só pode acenar dissonante, dada a sobra inalcançável, aquela palavra quebrada no enjambement: a sola / de um sapato; as rodas / dos carros, imagem do veículo pelo qual viajam / passageiros que não pensam / em coisas que tais. isso sem deixar de fora o vigor racional de onde pensa o/a poeta – (quintais, eis o rumor).
tais quintais talvez também sejam a memória ruidosa, o vestígio. a ficção por onde se curva, o canto, suas nuances. o equilíbrio perdido cujo centro não mais ocupa o engenho do aprumo; e se não é centro, resta a periferia. centro além do centro, o fora quando é dentro. embora não seja essa uma discussão geográfica, está ligada ao sentido de habitação das palavras quando elas mesmas são o entremeio, o lance, o voo. o tratado argumentativo sobre o qual sempre haverá de se dizer, para o qual sempre rumará o verso antes do corte e sua fatalidade.
o poema é inevitável. pode-se até tentar adiar sua vinda, mas ele virá. seja pelo silêncio – potente por tudo que ainda se dirá –, seja no que se apresenta em verso, estrofe ou falha, o poema está aí. sempre esteve. quando escrito, argumenta pelo devir. expõe a presença pela qual prevalece o a se desdobrar, o a se mostrar no não dito do visto. o que ainda está por ser escrito é já falho na genealogia de sua natalidade. mas o poema de qualquer modo / sai. ninguém segura a onda de se deixar escutar pelo poema. provocativo. argumenta-se. está aí o trato por onde rumor e humor se encontram, existindo um no outro tal qual a força de elocução do dizer. nessa artimanha, o poema toma o lugar do mundo; e se mundo é o argumento mais claro e evidente do poema, o único argumento, pode-se deixar de lado os compêndios que prezam pela obediência às convicções.
já se disse que filosofia seria uma disciplina que consiste em criar conceitos. talvez seja possível concordar com esse preceito desde que conceitos não sejam uma limitação, um dado para cercear compreensões, articulando-as por determinismos. nesse sentido fora de esquadros, o que fica do tratado é o que dele não se pode conter. o além, o ainda por se cuidar desde a força argumentativa de harmonização dos contrários. o mundo como único argumento do poema. poetas se descobrem junto com o que se preza nessa troca, no rearranjo do real ante as possibilidades de se dizer clara e evidentemente no poema – inevitável – que não termina, que não deixa de dizer.
p.s. o poema “Tratado da argumentação” foi publicado no livro Quase todas as noites (7letras, 2016), de Simone Brantes. em função das pesquisas que faço sobre o diálogo entre poesia e filosofia, cheguei ao citado livro. já tinha assistido a uma fala da Simone num evento da Faculdade de Letras da UFRJ, possivelmente entre os anos de 2015 e 2018, quando eu cursava meu doutorado. desde então, fiquei com seu nome na cabeça, como referência dessa fronteira entre poesia e filosofia. e mais: de dentro do movimento cíclico presente no poema lido, a inevitabilidade de seu nascimento e de ser ele – poema – o argumento do mundo, brilhou para mim como a necessidade de se dizer algo. tentei. fica então, aqui, considerando também a tensão entre rumor e humor, um diálogo. que o poema continue a tomar o lugar do mundo!
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.