EU NÃO IA FALAR DE AMOR: SOBRE AS INSEPARÁVEIS ZAZA E SIMONE – RENATA DE CASTRO

Coluna | Sibila


Não conhecia nada mais belo no mundo do que ser eu mesma
e gostar de Zaza.

Simone de Beauvoir, conhecida por muitos como a mãe da segunda onda do pensamento feminista, ainda tem escritos não publicados sob os cuidados de sua filha Sylvie Le Bon de Beauvoir, para a felicidade de seus leitores. Recentemente, saiu pela editora Record, com tradução de Ivone Benedetti, As inseparáveis, um pequeno romance em que Beauvoir ficcionaliza – não se sabe ao certo até onde – a vida de sua grande amiga e primeiro amor, Élisabeth Lacoin, a Zaza.

Na abertura do livro, Beauvoir escreve: 

A Zaza

Se esta noite tenho lágrimas nos olhos, será porque você está morta ou porque estou viva? Eu deveria lhe dedicar esta história: mas sei que você já não está em lugar nenhum, e é por artifício literário que lhe falo aqui. Aliás, isto não é realmente a sua história, mas apenas uma história inspirada em nós. Você não era Andrée, eu não sou Sylvie que fala em meu nome.

Eu não ia escrever sobre amor. Ia escrever sobre os perfis femininos que aparecem n’As inseparáveis, os perfis de Andrée/Zaza, de sua mãe e de Sylvie/Simone. 

A primeira, Andrée, é-nos apresentada como uma menina inteligente, perspicaz, ousada para o meio em que vivia e cheia de entusiasmo pela vida. A jovem foi tolhida pouco a pouco pelas freiras do colégio, pela família e, sobretudo, pela mãe. Além de doutrinada por uma fé católica baseada no pecado, costumava ser sobrecarregada com mil tarefas, sempre ocupada ao máximo para que seu corpo não se rebelasse antes do casamento. Para a narradora, Andrée/Zaza teria sucumbido justamente por ter tido sua vitalidade aguilhoada.

A mãe de Andrée, a julgar pelo que narra Sylvie, foi uma jovem vívida antes de ser submetida às convenções de um casamento indesejado e à irredutível maternidade. Embora a personagem tenha raiva da mãe da amiga por afastá-las frequentemente, há também empatia pela mulher que tem sobre si a responsabilidade de fazer com que as filhas mantenham o comportamento imposto a elas por uma estrutura patriarcal.

Por fim, o último perfil sobre o qual eu tinha intenção de escrever é o da própria narradora, Sylvie, que teve a oportunidade de seguir uma formação acadêmica e profissional – segundo ela, graças à falência de seu pai após a Primeira Guerra –, o que a manteve a salvo dos destinos impositivos que ainda imperavam na primeira metade do século passado, o casamento ou o convento.

No entanto, desisti dos perfis quando, ao transcrever a não-dedicatória de Simone de Beauvoir a sua amiga, saltou-me aos olhos sua declaração de amor tão franca. Consciente da morte de Zaza, como dedicar-lhe algo? 

Sylvie/Simone, ainda jovem, deixou de acreditar em um deus, algo que Andrée/Zaza não compreendia e questionava: “– Sylvie, se você não acredita em Deus, como pode suportar a vida?”. Isso porque Andrée suportava a vida que lhe era imposta pela família, pela posição social que ocupava, diferente da que desejava, com a fé de que havia uma compensação na retidão. Mas, se Beauvoir não acreditava em um deus ou em qualquer coisa que falasse de uma vida além da material, como dedicar seu romance a alguém que, como ela afirmou, não está em lugar nenhum? 

O que Simone de Beauvoir chamou de artifício literário, uma vez que ela criou uma autobiografia-romanesca para contar a história de Zaza, eu chamo de amor. 

Apesar de ter sido escrito em 1954, quatro anos antes da publicação de Memórias de uma moça bem-comportada – texto em que a amiga aparece do início ao fim –, As inseparáveis só foi publicado em 2020 na França, mais de seis décadas depois de escrito. Entretanto, o romance não demorou apenas a ser publicado, também sua escrita teve um grande afastamento temporal do período narrado, vinte e cinco anos após a morte de Élisabeth Lacoin, em 1929.

É de se pressupor que tenha sido uma afeição extremamente significativa ao ponto de Beauvoir ter mantido a memória ainda tão vivaz depois de um quarto de século e além. Tendo a filósofa se tornado ateia, nem mesmo se pode falar em uma mentalidade que acreditava em vida após a morte ou qualquer outra explicação metafisica que possa sustentar um sentimento tão longínquo no tempo e no espaço. A única razão para tal é a explicitada em sua não-dedicatória: falar ao outro, falar a Zaza, neste caso, só é possível vivificando-o. Isto é o amor.

Em um de seus ensaios sobre o amor, Ortega y Gasset – com quem concordo neste ponto – afirma que nos sentimos unidos a quem amamos, ainda que não estejamos de fato. É uma convivência simbólica. Para respeitar o ateísmo de Beauvoir, não falemos em alma, como Ortega y Gasset, mas em uma dilatação do ‘eu’ do amante – aquele que ama – que se estende até o amado, esteja ele onde estiver. Afinal o amor é da dimensão da individualidade, independe do amado, digamos real.

Ainda pensando com o filósofo espanhol, amar uma pessoa é dedicar-se à sua existência, isto é, dedicar-se a que o ser amado exista. Isso significa dizer que o amante dá vida, dentro de si, ao amado. É uma escolha. “Amar é vivificação perene, criação e conservação intencional do amado”, diz-nos Ortega y Gasset. 

Ao manter Zaza em suas memórias, Beauvoir vivificou continuamente sua amada. Claro que a relação das duas foi fundamental para quem a filósofa se tornou – crítica à burguesia da qual fazia parte, crítica à instituição católica como mantenedora de um sistema de classes e um dos nomes mais relevantes do pensamento feminista –, mas isso também foi possível por meio do amor, a afeição voluntária e intencional que a fez olhar o mundo ao redor a partir de novas perspectivas.

No fim do terceiro capítulo de Memórias de uma moça bem-comportada, Simone de Beauvoir escreveu que estava decidida a lutar com todas as forças para que nela, em Zaza, a vida vencesse a morte. Referia-se a já adoentada amiga. Não obstante, a escritora alcançou seu objetivo, ainda que Zaza tenha morrido.

Onde Beauvoir diz “é por artifício literário que te falo aqui”, leio “é por meio da linguagem do amor que te falo aqui”. Se há uma estreita relação entre fabulação erótica e fabulação literária, deixemos esta questão para outro texto. Por enquanto, fico com o eco d’As inseparáveis: o amor eterniza.

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Renata de Castro 
( linktr.ee ) é poetisa, professora, tradutora, feminista e doutora em Literatura. Tem três livros publicados: O terceiro quarto (Benfazeja, 2017), Hystéra (Escaleras, 2018) e De quando estive em Alto-Mar: poemas de afogamento e algumas mortes felizes (Escaleras, 2021). Fez parte das Antologias Poéticas Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2016), Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017), Senhoras Obscenas (Patuá, 2019) e da antologia bilíngue de poesia contemporânea de escritoras brasileiras e cubanas Sem mordaça. Sin mordaza (2021). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.