A AUTOFAGIA DA MEMÓRIA – JOÃO PAULO PARISIO

Coluna | Sentido


A relação afetiva com o alimento é algo muito sensível em Sente-se comigo, romance de Luciana Chardelli lançado pela editora 7Letras no ano passado. Esse elemento nos remete muito naturalmente à madalena de Proust, mas no caso de Chardelli não são alimentos a evocar memórias, é o processo de lembrar que invoca os alimentos inextricavelmente ligados a certas regiões e acidentes da vida de Teófilo, que de resto é jornalista, mas na época da faculdade foi bartender e preparava os drinques com o mesmo carinho minucioso dedicado nas madrugadas da pandemia à produção (eu quase diria cultivo) de pãezinhos de queijo. 

Fernanda, atual esposa, desiste dos pães de queijo caseiros e volta aos congelados, ele, não. Preparar comidas e bebidas é talvez o seu poder, o momento em que sente que faz algo, é poeta. A palavra “poesia” vem do verbo grego poiein, fazer, criar a partir de si. Não por acaso o conto em que Borges personagifica Homero se chama O fazedor. Quando prepara pães de queijo Teófilo é poeta, ainda se em colaboração com os desconhecidos criadores da receita. Outras receitas surgirão ao longo do livro, de autores muito bem conhecidos para o protagonista, e a poesia principal de segui-las está em trazê-los de volta, presentificá-los. Não é preciso estarem mortos, há uma pandemia e ela promove um momentâneo (?) distanciamento-tabu entre as pessoas, faz delas fantasmas recíprocos. Não pode haver comunhão de corpos.

Imagino-o formando as bolotas cruas entre as palmas das mãos enquanto lembra a juventude, lembra de quando conheceu Mica justamente na ocasião em que os dois pediram o mesmo pão na chapa com manteiga e café duplo numa padaria. Padaria, refeitório comum de solitários e avulsos. Ele e Mica se desavulsam, ela é atriz e Teófilo recorda o que depois das peças eles – comiam. Pernil com abacaxi, aliás, deve ser uma delícia, e me peguei salivando por um às onze e quarenta da noite. Na geladeira, ovo, queijo, presunto, iogurte e, graças aos deuses, um encartado de Danette, aquele pudim de chocolate industrializado, que eu comprei depois de muito tempo num movimento incomum, sem dúvida movido em grande parte pela memória afetiva. É um pedaço de minha infância, menos que para Teófilo as guloseimas de sua mãe, o toucinho do céu, o sorvete de creme cuja receita fora perdida, o pudim de claras que seu pai comia rezando. Coisas artesanais, manufaturadas. Poieins.

Esse livro nos dá fome, embora tateie as fomes arrefecidas de um homem envelhecido em seu terceiro casamento, este também avançado no caminho da ruína, mais um na estatística dos divórcios da pandemia. Versa na mesma medida sobre a perseverança das fomes. “Como pode uma explosão ser desistente?”, indaga Teófilo em seu miolo, no  centro exato da narrativa, que não encerra nenhum caroço, só a camada mais íntima da cebola, translúcida, tenra, glandular. Se há um realismo que respeito, é esse, esse espírito. “Nessa quarentena comer tornou-se um grande programa”. “Ter chegado até aqui, ter me empenhado tanto, no fundo não fez qualquer sentido. Tantos anos já se passaram e eu nem percebi. Agora que não tenho ocupações que me retirem da verdade, vejo que estar neste apartamento luminoso não teve qualquer significado. Não para mim”.

Apesar do texto cuidado, talvez Chardelli não seja uma poeta no sentido da alta granularidade artesanal. Suas incursões lírico-filosóficas não raro desembocam numa paisagem monótona pontuada aqui e ali por lugares-comuns. Uma vez que a narrativa transcorre em primeira pessoa, poderíamos incriminar Teófilo, colocar esses extravios na conta da caracterização do personagem, mas esse não me parece um álibi hábil, mesmo porque acontece dos diálogos serem engessados, perpassados por certa formalidade e preciosismo que não encontra também justificação plena em eventuais cerimônia e distanciamento dos interlocutores. São trechos que mereciam ser melhor cozidos. Pois escrever um livro, sobretudo um romance, é isso, cozinhá-lo até encontrar o ponto, o ponto para o todo, sem deixar de fora alguma parte.

Esses elementos, contudo, são como a passa que pode ser colocada à beira do prato, se não sabe bem ao paladar. Chardelli é poeta no sentido de ser uma fazedora paciente e sutil. Não falta ao texto, e consequentemente à autora, lúcida acurácia. Na teia urdida captura sentidos densos e esquivos como peixes das profundezas. Um exemplo, a típica inércia, indignação autofágica do burguês brasileiro ante a miséria de seu país, esse ficar arrasado por um segundo e no seguinte voltar a viver, fiado na própria impotência.

Outro exemplo, a desordenação cubista do tempo que sofremos ao longo do assalto mundial do vírus. Que não podia deixar de ser um desarranjo ou rearranjo cubista de nós mesmos, de nossas faces perante a realidade, revelador de vazios e demandador de compensações como o preparo metódico, até mesmo zen em alguns momentos, nos diz o texto, do alimento, e a contagem dos próprios passos no interior do apartamento onde alguém pode estar apartado até de si. Então quem sofre, quem se ressente?

Mesmo a angústia Teófilo demarca com metáforas alimentares. “Sinto como se existisse um pão feito com farinha de milho na minha garganta”. E isso enquanto engole ansiolíticos como uma galinha bica milho no terreiro. Seria muito menos interessante se Teófilo fosse chef ou gastrônomo, ou repórter de culinária. Ou mulher, a mulher tão historicamente associada à cozinha e ao cozinhar. E é mais interessante ainda que o protagonista seja esse homem sendo sua autora, autora, não autor. 

No destempo da pandemia criamos personas provisórias. Se um se volta para o misticismo, outro se refugia nos games. Agora muitos estão guardando essas peles no armário como fantasias ou abrigos para outros invernos da alma. Teófilo, homem, hétero, cis, (ainda) casado com uma mulher muito mais jovem, cozinha, assume uma indumentária social habitualmente vinculada ao feminino, porém no mais antissocial dos contextos, o de uma epidemia.

Um dos trunfos de Sente-se comigo é o modo como essa centralidade da comida é posta sem retórica, como um prato na mesa, sem discursos ciliares, a não ser quando se combina com a sabichonice jornalística do narrador perante a mulher. “Você sabe por que a pizza Margherita se chama Margherita? Em homenagem à rainha italiana Margherita di Savoia”. Mas isso não acontece quando ele monologa, quando não há testemunha senão o leitor, do outro lado de uma parede invisível de pensamento. E é assim quase todo o tempo. Só nós fazemos companhia a Teófilo, e ele a nós, também fantasmas recíprocos, paradoxalmente comunicantes.

Assim é que Chardelli obtém seus cristalinos efeitos a partir de nebuloso, às vezes lodoso material, mediante um fluxo sensorial de pensamento criativo empático, irmanador, irmão na dor (perdoai), que nos convida a sentar e sentir, junto com ele, sem surtos trágicos pavoneantes, sem pirotecnias vãs. Esse é um livro sobre o desamparo e o tênue aconchego que encontramos em meio a ele, nos covis do corpo, da casa, da privacidade, da atividade solitária que ao menos o tempo testemunha. Exemplifica o curioso efeito que nos leva a experimentar aconchego, olhando através dessa parede invisível da narrativa, quando assistimos a alguém buscando os gravetos e compondo seu precário ninho destinado a acolchoar a existência. Nos reconhecemos nele, tateantes, titubeantes, tatibitates na vida. Não estamos sozinhos. Estamos juntos na solidão.

Tenho sérias ressalvas a O peso do pássaro morto, de Aline Bei. Uma delas é que o acúmulo de desgraças assume proporções tais que conduz o texto ao contrário de seu escopo, o drama da vida. Eu me vi obrigado a recordar o personagem humorístico Joseph Climber, embora não haja o elemento Pollyana, felizmente, nem tampouco a redenção pelo cômico. Chardelli evita excessos com o tranquilo virtuosismo da maturidade, empregando o arrojo necessário para contar uma estória que não tem nem chaves de ouro nem laços mirabolantes. Ela está interessada no lento mergulho, na duração da paisagem submarina da alma.

Talvez o sentimento dominante em Sente-se comigo, a par da solidão explícita, seja o de que estamos no mesmo barco, ainda que cada um no seu camarote, separado de outros apenas por uma parede. É o caso de Teófilo e Fernanda. Dividem o espaço elusivos um ao outro como o tigre de Cortázar aos habitantes humanos da residência em Bestiário. Quando se reencontram, “O ar parece entrar em meus pulmões como se estivéssemos em um bosque”. E estão. Um bosque é também um labirinto, mas nele o confinamento, a claustrofobia, se fundem a seu antípoda, o sentimento selvagem de liberdade e comunhão. “Nada importa, sinto o cheiro de seus cabelos. Há quanto tempo meu olfato voltou?”. Esses tigres, como os de Borges, e também o de Cortázar, podem ser apenas sonhados. A cidade por sua vez também é um bosque, com suas presas e predadores. É ainda uma torre kafkiana de solitários.

Contudo não há remédio para a nossa interdependência, e o fantasma da Covid que não só ronda como envolve a Terra com seus grãos vivos e letais (uma tempestade de areia planetária) concorre a um só tempo para isolar-nos e unanimizar-nos. Antes de entregar-se aos rituais de cozinhar e comer, Teófilo deve observar o da desinfetação com o escrúpulo cabalístico de um oficiante hindu da época dos Upanishads ao sacrificar uma cabra.

Em Sente-se comigo, narrativa afluente do curso da pandemia que vivemos, portanto sitiada pela morte e seus números multitudinários, a morte enquanto acidente individual é apenas lembrada e aludida, não acontece na nossa frente, está no passado e no futuro diegéticos, ou perpendicularmente apontada numa referência, curiosamente uma característica do filme Aftersun, que nesse minuto causa frisson mundo afora. Em consideração a nós e a um princípio de economia narrativa a mãe de Teófilo permanece viva com mais de noventa anos. 

Não há empatia do gênero exercitado nessa obra sem um olhar penetrante, e úmido. Alguém, talvez o poeta místico Rumi, disse que o amor é uma inteligência. A atmosfera dessa autora fraternalmente provocante, pois se sabe alvo da mesma provocação, recende a uma iguaria de sabor aveludado-penetrante, ferinossuave. Talvez um peixe mediterrâneo feito no vapor, com ervas entre refrescantes e picantes, apetecível monstro, sobretudo visto assim na meia-luz da imaginação, que é uma memória prospectiva. Para ela, todas as receitas são possíveis. Agora são meia-noite e quinze, vou comer um atum em lata em cima da máquina de lavar, meu aparador.

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João Paulo Parisio (@jpparisio), nascido no Recife em 4 de setembro de 1982, é autor de Legião anônima (contos, 2014, Cepe editora), Esculturas fluidas (poemas, 2015, Cepe editora), Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018, editora Patuá) e Retrocausalidade (romance, 2020, prêmio Pernambuco, Cepe editora), obras que o situaram entre os expoentes da literatura brasileira contemporânea. Apontado pelo crítico José Castello como “um dos principais nomes da nova geração de narradores brasileiros”, tem ainda textos veiculados em revistas, jornais e sites especializados.