coluna | palavra : alucinógeno
algumas ideias para guardar com afeto: jogar fora o que não presta ou fazer da coisa um inutensílio. transformar o acervo das imbecilidades do dia no encantatório flagelo das noites; e assim seja porque quanto mais impossível for a linha por onde o sol escapa, menos chegaremos ao prestígio das gentes santas. tantas quantas forem descartadas as justificativas para as folias substantivas, melhores serão os gestos para a poesia, pois há encanto em quem se permite a liberdade (inclusive nas frases), em quem faz da vida um exercício para as falhas dos nomes ou resiste ao jeito oportuno das categorias.
há poetas e isso basta. nas mãos reunidas nesse abraço de perto ou de longe encontram-se vestígios de versos. isso para dizer que a gente se emociona quando lê num poema de ana maria vasconcelos: “soprar a asa de um inseto / tirar-lhe o pó / domesticá-lo para a morte”. especificamente aqui há algo de ínfimo e próximo com a poesia de manoel de barros, tão diferente quanto. ou apenas seria uma conjugação frasal por destrambelhamento de referências. que seja. afinal, o que importa é a devoção às frases, principalmente se escritas a lápis.
Um lápis numa península
o poema é um inutensílio
disse o
Manoel de Barros, mas
também o são
todas as coisas
úteis
quando chegam atrasadas ou
duram
errado,
como um cadeado num portão de uma casa demolida
como o brinquedo novo de uma criança morta como
uma gaita de foles
como
um poste ainda aceso perdendo a briga com a madrugada
sobre o que se dizer a respeito de um poema eu nunca sei. não sei saber o poema, tampouco a mensagem (há?) que ele carrega ou ainda se pelo poema a mensagem (havendo) carregue a microfonia ensebada para deslizar ouvidos adentro e fazer do corpo um santuário para o que não presta (as melhores receitas!). o que dizer (se possível for) de um lápis numa península sem com isso exagerar o locus operandi do que virá a ser escrito? aqui o quase enfatiza o traço como rascunho, aquilo que poderá ser apagado se riscado pelo caminho que faz do isolamento uma, sei lá, ínsula apoucada. a ligadura é um atrevimento sobre as águas ou, por que não, um possível escrito que reúne dois matizes: uma coisa numa quase coisa ou numa coisa que é quase: um lápis numa península.
o inutensílio carregado no segredo das mãos pela índole de manoel de barros irriga outros ventres. somos nascituros desde os lapsos e seus começos ou quando se troca o verso pelo significado de atrás, e estamos sempre lendo / uma espécie de oposto. morar no nome da utilidade seria tal como desfazer a festa de seus símbolos. abrigar a arruaça na sala e ser nela o que afronta faz aparecer nessa proximidade dicções muito singulares entre a ana e o manoel. o que se preserva das aproximações entre poetas são tangência e distanciamento. assim como alguma incorporação nessa corporeidade dos encontros.
a beleza das coisas úteis me examina em seu atraso ou quando duram / errado. o inventário de imagens do poema acima desajusta o tamanho lógico dos fatos. mas quem sou eu para dizer se isto ou aquilo? quando muito, percebo-me dentro do convite indireto para o coro com o vozerio dançante das imagens. o poema é um inutensílio, diz o manoel. e a ana completa. mas não por preencher uma lacuna deixada ou se atrever a continuar o poema de dentro do que lhe falta. não, não. a ana enxerga no poema outro lugar pelo qual o tangencia, mas não o retoma. ou retoma, porque estamos sempre em recomeços desde o que nos afetou em algum momento. enfim. a largura do inutensílio cabe em mais lugares, e só pessoas com criança no olhar enxergam esse feito. é isso. um alargamento do criar acrescido do sufixo “-ança” que, na polissemia do nome, também traz infâncias para o que é novo, afinal, estamos o tempo todo falando em/de nascimentos.
é bonito pensar no cadeado solitário, deixando aparecer seu ser inútil. o problema da utilidade talvez seja o seu prazo de validade e o destino empregado a determinada coisa. findos esses quesitos, torna-se finado o objeto. contudo, para poesia não há velório. sempre se pega um jeito de estender os desusos, deixando para trás a nomenclatura da usualidade. inútil pode ser que seja o que se prende ao desapego, portanto, o que desprende, que desaprende, em toda possibilidade de o prefixo “des-” indicar tanto o sentido de negatividade quanto o de intensificação.
trocando em miúdos, no caso do desaprender seria tal como deixar de aprender algo estabelecido para ir mais fundo na aprendizagem. viver o limite transitivo desses lugares. quem sabe – e ainda de dentro do paradoxo de se prender ao desapego – o cadeado sublime a vigência do aprisionamento. não há o que prender, tampouco a que se prender. prender-se-ia o cadeado ao próprio encaixe e nele ficaria assentado, como alguém que depois de crescido esqueceu o pôr do sol na infância.
atentos também estamos ao brinquedo novo de uma criança morta, à gaita de foles e ao poste ainda aceso perdendo a briga com a madruga. destrava-se a perspectiva lógica da solidariedade para implantação de ruídos no artifício das operações proveitosas. alguma coisa de sinestesia comparece ao que não se explica, mas para uns alguéns se faz necessário o estatuto da celebração crítica. entretanto o poema. o poema. o poema. o poema não pede, não quer, não necessita de nada que se invista nele como aporte especulativo. estar à deriva no que ele permite ocupar antes da razoabilidade seria algo como se manter nessa briga entre a luz elétrica e o amanhecer. e vigiar o riso do brinquedo durante uma criança morta.
p.s. conheci o poema “Um lápis numa península” quando foi postado no instagram, no feed da Revista Peixe-Boi, em abril de 2022, e desde então passei a acompanhar as postagens da Ana Maria Vasconcelos. aliás, o referido poema integra seu livro Eram brutos os barcos (Trajes Lunares, 2022). aqui neste texto, além do citado poema, comparecem alguns outros presentes no instagram da poeta. um deles foi postado por ela enquanto eu escrevia este texto, então aproveitei para trazê-lo também pra cá. e é isso. penso no poema como uma celebração de instantes, um lugar sagrado, litúrgico, sujo, desalinhado, afora outras coisas tantas, sejam elas consideradas boas ou ruins. pois poema, arrisco, é este lugar transitivo, um convite, remelexo. agradeço à Ana pela dança.
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.