Coluna | Sibila
Sonhei ser útil à humanidade. Não consegui, mas fiz versos. Estou convicta de que a poesia é tão indispensável à existência como a água, o ar, a luz, a crença, o pão e o amor.
Algumas poetisas vêm sendo resgatadas pelos estudos acadêmicos nos últimos anos, sobretudo por pesquisadoras que buscam escritoras que foram esquecidas de propósito ou silenciadas, como Gilka Machado. Particularmente, só tive acesso à sua obra em 2017, quando o Selo Demônio Negro lançou sua Poesia Completa, com prefácio de Maria Lúcia Dal Farra.
Gilka Machado nasceu em 12 de março de 1893, no seio de uma família de artistas. Aos catorze anos, estreou sua vida literária ganhando os três primeiros lugares de um concurso de poesia no jornal A Imprensa. Teve seu primeiro livro, Cristais Partidos, publicado em 1915, aos 22 anos.
Entretanto, esse êxito precoce não foi a tônica na vida de Gilka. De família pobre, casou-se com um poeta também pobre, e juntos levaram uma vida de dificuldades. Aos trinta anos, a poetisa, já mãe de dois filhos, ficou viúva. A necessidade levou Gilka Machado a administrar uma pensão ao longo de muitos anos.
Não viveu de poesia, é verdade, mas foi lida, muito lida por seus contemporâneos. Em 1977, com o surgimento de uma cátedra na Academia Brasileira de Letras, Jorge Amado escreveu-lhe, a fim de persuadi-la a se candidatar, pois ele acreditava que não havia entre as escritoras de então nenhuma outra que tivesse uma produção poética tão bela quanto a sua. Gilka declinou do convite.
Mais de quarenta anos depois de ter parado de escrever, teve o reconhecimento de sua obra ao receber, em 1979, o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras por Poesias Completas.
Formalmente sua poesia apresenta traços tanto do Parnasianismo e do Simbolismo como do Modernismo, já que também escrevia versos livres. A mistura de movimentos literários do final do século XIX e início do século XX coloca Gilka Machado, segundo Dal Farra, entre o grupo heterogêneo conhecido como pré-modernista. Por que, então, não a vemos nos livros didáticos junto a Augusto dos Anjos?
Gilka Machado tem um papel fundamental na história da poesia brasileira de autoria feminina, pois ela foi a primeira a publicar poemas em que Eros é cantado por uma voz de mulher. A poetisa deslocou a mulher do papel de musa passiva do desejo masculino para o papel de dona de seu próprio desejo. Isso fez com que recebesse críticas virulentas desde sua estreia. Já em Cristais Partidos, encontramos em um de seus poemas mais conhecidos, Ser mulher, uma descrição do que seria uma mulher e uma crítica à forma como se impunha à mulher uma determinada existência:
Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida: a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior…
Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um Senhor…
Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…
Ser mulher, e oh! Atroz, tentálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preconceitos sociais!
A mulher seria feita para liberdade e para o amor, ou seja, para uma vida plena para ser vivida com um companheiro. No entanto, a mulher não encontra partilha, encontra o jugo de um Senhor. Ser mulher é um poema que grita o patriarcado, uma estrutura que aprisiona e mutila as mulheres. Qualquer uma que tente fugir desse sistema sofrerá com os preconceitos, revela-nos os versos finais do poema e a história de vida da poetisa.
Embora o discurso de defesa da liberdade feminina em Gilka Machado tenha sido praticamente todo lírico, ela também se envolveu, em um dado momento de sua vida, de modo direto, com o movimento sufragista. Participou, junto a Bertha Lutz e tantas outras, da fundação do Partido Republicano Feminino, em 1910, cujo objetivo principal era fazer com que o Congresso discutisse o direito feminino ao voto, conquistado apenas em 1932.
Publicou seis livros de 1915 a 1938, Cristais Partidos, Estados de Alma, Mulher Nua, Meu Glorioso Pecado e Sublimação. Os títulos parecem sugerir uma relação direta com as críticas que Gilka Machado recebia. Os intelectuais que a defendiam chamavam sempre a atenção para a retidão de sua vida ordinária, colocando-a longe da volúpia cantada em seus versos, afinal seria apenas sublimação.O primeiro poema de seu segundo livro, Estados da Alma, parece responder às críticas:
Possa eu, da frase nos agrestes sons,
em versos minuciosos ou sucintos,
expressar-me, dizer dos meus instintos,
sejam eles, embora, maus ou bons.
Quero me ver no verso, intimamente,
em sensações de gozo ou de pesar,
pois, ocultar aquilo que se sente,
é o próprio sentimento condenar.
Que do meu sonho o branco véu se esgarce
e mostre nua, totalmente nua,
na plena graça da simpleza sua,
minha Emoção, sem peias, sem disfarce.
Quero a arte livre em sua contextura,
que na arte, embora pecadora, a Ideia,
deve julgada ser como Frineia:
– na pureza triunfal da formosura.
Gelar minha alma de paixões acesa
porque? Se desta forma ao Mundo vim;
se adoro filialmente a Natureza e a Natureza
é que me fez assim.
Meu ser interno, tumultuoso, vário,
– mau grado o parvo olhar profanador –
no livro exponho como num mostruário:
sempre a verdade é digna de louvor.
Fiquem no verso, pois, eternamente,
as minhas sensações gravadas, vivas,
nas longas crises, nas alternativas
desta minha alma doente.
Relatando o pesar, relatando o prazer,
través a agitação, través a calma,
a estrofe tão somente deve ser
o diagnóstico da alma.
A quarta estrofe argumenta que os versos deveriam ser julgados como Frineia, a personagem grega que teria sido absolvida de seu crime – negar-se a um homem poderoso – após se mostrar nua diante de seus julgadores, tamanha era sua beleza.
É preciso lembrar que se o conceito de Belo ainda hoje é um parâmetro de análise para as artes, muito mais forte era há cem anos, quando o poema foi escrito. É um argumento simples e exato: não julgar o poema pelo conteúdo, que fere a moral conservadora; julgá-lo, sim, por sua estética.
Apesar da qualidade de seus versos, em uma sociedade machista, elitista e racista, ela tinha contra si o gênero, a classe e o tom de pele. Dal Farra levanta a hipótese de o apagamento de Gilka Machado nos manuais de literatura ter se dado por ela ser negra. Parece-me que, somado a tudo isso, o fato de ela ter escrito poemas com tamanho teor erótico fez com que muitos de seus críticos e também caluniadores a feitichizassem, portanto, diminuíssem-na.
O sujeito poético também defende poder expor seus sentimentos, como se questionasse por que não seria possível à sua voz feminina expressar-se em versos sobre sua existência de prazer e dor. E aqui trago mais uma vez à Sibila a questão do confessionalismo: por que é dada ao poeta a possibilidade de escrever sobre si e à poetisa, não?
Gilka reivindica o lugar de um sujeito feminino na poesia, como no poema acima. Mas também reivindica que este sujeito possa ser desejante, dono do próprio gozo, como no último terceto do soneto No cavalo:
[…]
Quando em teu corpo forte o frágil corpo aprumo
Eu me sinto disposta a lançar-me, sem rumo,
à conquista da Glória e à conquista do Amor!
O erotismo alimenta os poemas de Gilka Machado, é a energia vital, a energia fecundante que sua pena gesta, como no poema Fecundação:
Teus olhos me olham
longamente,
imperiosamente…
de dentro deles teu amor me espia.
[…]
Tem teu mórbido olhar
penetrações supremas
e sinto, por senti-lo, tal prazer,
há nos meus poros tal palpitação,
que me vem a ilusão
de que se vai abrir
todo meu corpo
em poemas.
Gilka Machado parou de escrever em 1938. Morreu em 1980. Deixou-nos a impressão de que as críticas venceram-na. Se assim foi, não sabemos. Mas sabemos hoje de sua obra, que sobrevive a seu silenciamento e a sua morte. Como grande poetisa que foi, como qualquer outra grande, foi levada por Eros, abriu-se toda em poemas, como uma flor e seu pólen, de modo a nos fecundar, as gerações seguintes de poetisas.
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Renata de Castro ( linktr.ee ) é poetisa, professora, tradutora, feminista e doutora em Literatura. Tem três livros publicados: O terceiro quarto (Benfazeja, 2017), Hystéra (Escaleras, 2018) e De quando estive em Alto-Mar: poemas de afogamento e algumas mortes felizes (Escaleras, 2021). Fez parte das Antologias Poéticas Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2016), Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017), Senhoras Obscenas (Patuá, 2019) e da antologia bilíngue de poesia contemporânea de escritoras brasileiras e cubanas Sem mordaça. Sin mordaza (2021). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.