Coluna | Palimpsesto
Entre a sala e o corredor existia um espaço desabitado. A janela se encerrava nos buracos antes ocupados por pregos. A porta era aberta pelo lado esquerdo, um sinal nada auspicioso pela família. Sim, chamávamo-nos de família quando ainda nos esquentávamos na palavra amor. Inutilizamos o espaço entre a sala e o corredor após entendermos que nunca conseguiríamos construir um lavabo ali, o sonho de Charles desde quando nos casamos. Assim também inutilizamos a palavra amor, quando percebemos que nunca conseguiríamos construir nada com uma palavra apenas.
Mas aquele espaço continuou lá, a metade de um lavabo, entre a sala e o corredor. Não quisemos destruí-lo, tampouco continuá-lo. Talvez isso também seja família, algo que, do desejo, se mostre irrealizável, mas que, justamente por nascer do desejo, nos negamos a destruí-lo, menos ainda a continuá-lo.
A minha família, pelo menos, nasceu assim. Lembro-me que, do primeiro parto, não queria que nascesse. Um filho, um nome. Uma mãe. Sem nome. Na época, Charles ainda estava empenhado em construir o banheiro para os visitantes.
Estava obcecado. Queria algo entre luxuoso e simples. Chegou a pregar alguns quadros na parede. Flores em vasos, traços abstratos entre outras pinceladas. Sempre que eu via as pinturas, pensava na visita sentada na latrina, sob cores quentes e frias, concentrada no que nos deixaria, de fato, como recordação. Durou alguns anos a que ele se convencesse da impossibilidade dos quadros ali. Tempo a se interromper a construção do banheiro por mais de cinco vezes.
A obsessão de Charles perdurou a minha segunda gravidez. Enjoava mais, me aguentava menos, mas persistíamos, tijolo por tijolo, na construção de algo entre o simples e o luxuoso. Franja colada na testa, corpo inclinado sobre os azulejos, a respiração quente de Charles, uma insistência perversa do movimento lento das mãos. Quando se deitou na cama naquela noite, eu já adivinhava. Havia desistido. Não quis se estender, apenas me disse que não aguentava mais e virou de lado. Eu, com o bebê e quase sem leite, pisquei em retribuição. Também não aguentava mais.
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Os filhos cresciam de repente. Filhos crescem de repente. Amava e odiava, pouco me reconhecia nas horas de olhos abertos e cabeça em outro mundo. Também me culpava por amar e odiar com a cabeça em outro mundo. Até que, quase sem conseguir respirar, redescobri aquele espaço. A metade de um lavabo. Um espaço escuro, uma nesga de um silêncio difícil. Nos dias ruins, me demorava naquele espaço escuro, o corpo quieto, aquele pedaço de silêncio que me faltava.
Chegava a me abraçar feliz, me formava daquelas horas demoradas de um quarto escuro. No final, sem visita ou recordações reais, sobre a latrina mal acabada e sob as cores quentes e frias, guardava-me dos outros. Meu segredo. Charles e meus filhos se cansaram de me procurar naquelas horas do dia. Não queria pensar neles, queria o silêncio e o escuro.
A metade de um lavabo passou a ser também metade dos meus dias. Era duas, fora e dentro do canto escuro. Às vezes, me arrastava até ali em meio à briga dos filhos, à bufada curta de Charles, ao meu cansaço prolongado. Ali me largava quieta. Ali me entendia. Ali crescia a vontade de nada. Falava menos, queria mais. Charles fechava os olhos, mas não lhe escapava. Algo mudava em mim.
Um dia, do pequeno lavabo corri ao armário. Joguei as roupas em uma mala velha sem olhar para meus filhos. Não queria aquilo, não era aquilo. Era feita do silêncio que guardavam os dias no canto escuro. Buscaria aquele silêncio em outro lugar, já distante do que mal se formava por apenas uma palavra.
Da minha família, guardo hoje apenas uma foto. O sorriso de Charles, minha barriga grande, além dos primeiros azulejos do que seria um dia meu pedaço esquecido entre a sala e o corredor.
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Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger. Mantém uma coluna na revista Vício Velho.
(Imagem: Edward Hopper)