Coluna | Sibila
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Nóssis, a quem Eros derreteu cera para suas tábuas.1
Pesquisar a escrita de mulheres, buscar mulheres que escreveram em períodos que nos contaram que elas não escreviam é seguir o fio de Ariadne, é tatear parte da trama tecida por cada uma que se revela. Do processo de fiar e tecer, há algo muito enraizado no universo feminino, como se fosse um caminho de acesso a nós, a um eu feminino coletivo, a um lugar onde nos encontramos umas com as outras numa gestação subjetiva.
Cada mulher que me proponho a estudar me dá outra mulher para ser desvelada em sentido estrito, isto é, para lhe tirar o véu que me impedia de vê-la. Em função de minha satisfação, e muitas vezes espanto, revelo também a quem acompanha a Sibila minha ignorância e meus processos de busca.
Foi assim com Nóssis. Ao aprofundar minhas pesquisas sobre Renée Vivien – a respeito de quem já escrevi aqui na coluna –, puxei um fio de seu trabalho como tradutora de Safo e cheguei a Nóssis, escritora do século III antes de nossa era, que vivia em Lócris, região “periférica” da Magna Grécia.
Nóssis tramou sua obra não só com os clássicos masculinos – pois é sabido que os leu –, como também se filiou a Safo, estabelecendo uma tradição de poesia de autoria feminina com temas, sobretudo, do universo da mulher. Não há dúvidas de que era instruída e, possivelmente, pertencia à aristocracia local. Também se sabe que não era a única poetisa de sua época. Todavia, Nóssis chegou até nós com o epíteto cunhado pelo poeta Antípatro de Tessalônica: thelyglossos (θηλύγλωσσον), a de língua feminina, o que a diferenciava de suas contemporâneas.
No fim do século I antes de nossa era ou no início do século seguinte, Antípatro de Tessalônica elaborou o cânone “das nove Musas terrenas”. Distanciando-se do alexandrino – cuja seleção referente ao gênero lírico era de nove poetas: oito homens e uma mulher, Safo –, o cânone de Antípatro foi estabelecido não por gênero literário, mas, sim, por gênero sexual.
Τάσδε θεογλώσσους Ἑλικὼν ἔθρεψε γυναῖκας
ὕµνοις, καὶ Μακεδὼν Πιερίας σκόπελος,
Πρήξιλλαν, Μοιρώ, Ἀνύτης στόµα, θῆλυν Ὅµηρον,
Λεσβιάδων Σαπφὼ κόσµον ἐυπλοκάµων,
Ἤρινναν, Τελέσιλλαν ἀγακλέα, καὶ σέ, Κόριννα,
θοῦριν Ἀθηναίης ἀσπίδα µελψαµέναν,
Νοσσίδα θηλύγλωσσον, ἰδὲ γλυκυαχέα Μύρτιν,
πάσας ἀενάων ἐργάτιδας σελίδων.
ἐννέα µὲν Μούσας µέγας Οὐρανός, ἐννέα δ’ αὐτὰς
Γαῖα τέκεν, θνατοῖς ἄφθιτον εὐφροσύναν.
A estas mulheres de divina voz alimentaram com odes
o Hélicon e o promontório macedônio de Pieria,
a Praxila, a Moero, a Anite, a Homero feminina,
a Safo, glória das mulheres lésbias de formosos risos,
a Erina, à formosa Telesila, e a ti, Corina,
que cantaste o escudo marcial de Atena,
a Nóssis de voz feminina, e a Mirtes de doces tons,
todas produtoras de páginas eternas.
A nove musas engendrou o grande Urano, mas a estas nove,
regozijo imortal para os imortais, engendrou-as Gea.2
Diferente de Safo – de quem sobrou inúmeros poemas incompletos, à exceção de um –, de Nóssis resistiram ao tempo apenas doze poemas de uma vasta obra, no entanto, completos. Estas composições sobreviventes são epigramas, textos originalmente inscricionais – texto em lápides, por exemplo –, que ganhou status de gênero literário à medida que os poetas foram se apropriando de sua forma. O gênero epigramático distinguia-se de outros gêneros de poesia, pois era elaborado para ser lido. Entretanto, sabe-se que Nóssis também compôs versos mélicos, como Safo, versos para serem cantados.
Em seus poemas, há sempre menções às deusas, como Afrodite, Ártemis, Hera, por exemplo, e a outras mulheres, como à filha da poetisa Melina ou à bela Samita. Além destas, em meu poema preferido, Nóssis tece sua genealogia. Aqui trago a única tradução para o português que consegui localizar, feita por Clara Mossry Sperb, em sua dissertação de mestrado dedicada a mais duas escritoras além de Nóssis:
Ἥρα τιμήεσσα, Λακίνιον ἃ τὸ θυῶδες
πολλάκις οὐρανόθεν νεισομένα καθορῇς,
δέξαι βύσσινον εἷμα, τό τοι μετὰ παιδὸς ἀγαυᾶς
Νοσσίδος ὕφανεν Θευφιλὶς ἁ Κλεόχας.
Hera venerável, que Lacínio de doce fragrância
contemplas frequentemente quando desces do céu,
aceita a roupa de linho, que a ti, com a filha nobre
Nóssis, teceu Teofílis [filha] de Cleócas.
Considerando que a Grécia era patriarcal ao ponto de ter criado um espaço doméstico exclusivo – e reclusivo – para as mulheres, o gineceu, os versos acima se singularizam – ainda que haja a hipótese de a mulher ter ocupado uma posição menos inferiorizada em Lócris –, uma vez que Nóssis enumera sua linhagem em uma perspectiva matrilinear. No epigrama, ela, sua mãe Teofilis e sua avó Cleócas teceram uma roupa em oferenda a uma divindade feminina, Hera.
Além das entidades e personagens femininas, de acordo com alguns especialistas, há dois epigramas, que possivelmente abriam e fechavam uma coleção de Nóssis, hoje perdida, cuja vinculação com a poetisa de Lesbos é mais evidente.
Ἅδιον οὐδὲν ἔρωτος· ἃ δ’ ὄλβια, δεύτερα πάντα
ἐστίν· ἀπὸ στόματος δ’ ἔπτυσα καὶ τὸ μέλι.
τοῦτο λέγει Νοσσίς· τίνα δ’ ἁ Κύπρις οὐκ ἐφίλησεν,
οὐκ οἶδεν κήνα γ’, ἄνθεα ποῖα ῥόδα.
Nada é mais doce do que o desejo, e todas as felicidades estão
em segundo lugar: da boca cuspo até mesmo o mel.
Isso diz Nóssis: a quem a Cípris não amou, essa pessoa
não sabe nem que tipo de flores são as rosas.
Ὦ ξεῖν’, εἰ τύ γε πλεῖς ποτὶ καλλίχορον Μιτυλάναν
τὰν Σαπφὼ χαρίτων ἄνθος ἐναυσαμέναν ,
εἰπεῖν, ὡς Μούσαισι φίλαν τήνᾳ τε Λοκρὶς γᾶ
τίκτεν ἴσαν ὅτι θ’ οἱ τοὔνομα Νοσσίς· ἴθι.
Estrangeiro, se tu navegares para Mitilene de belos coros,
que inspirou Safo, flor das graças,
diz como é querida pelas Musas a terra de Lócris
que gerou sua igual, cujo nome é Nóssis. Vai!
O segundo poema simula um epitáfio, ou seja, uma inscrição em lápide tumular. O habitual nesse tipo de texto era deixar uma mensagem para ser levada pelo viajante que passasse na frente do túmulo aos familiares do morto. No entanto, ao invés disso, os versos de Nóssis pedem que a mensagem seja levada a Mitilene, a Ilha de Lesbos, a Safo, pois as Musas choram sua morte.
O fato de Nóssis aparecer em escritos de poetas permite-nos deduzir que foi lida independentemente do gênero. Todavia, o fato de ter trazido o universo feminino para seus versos e estabelecer filiação com Safo, que viveu cerca de três séculos antes, faz-nos pensar na tecitura de uma tradição de autoria feminina.
Sem querer ser injusta com os poetas Antípatro de Tessalônica e Meleagro de Gadara, se nós, mulheres, não nos dedicamos a esta urdidura, como Nóssis, como Reneé Vivien, como Marguerite Yourcenar ou como Maria Mercè Marçal, por exemplo, o tecido não se expande, não se espalha, não chega até nós, não nos acolhe. É preciso seguir fiando e tecendo a história da escrita das mulheres. Ainda há muito o que fazer. Teçamos.
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1 σὺν δ’ ἀναμὶξ πλέξας μυρόπνουν εὐάνθεμον ἶριν/ Νοσσίδος, ἧς δέλτοις κηρὸν ἔτηξεν Ἔρως·(Y con ello [Meleagro] tejió el perfumado y floreciente íris/ de Nóside, a quien para sus tablillas la cera derritió Eros.- Tradução de Elbia Haydée Difabio).
2 Dada minha impossibilidade de tradução diretamente do grego, apresento minha tradução a partir do espanhol feita por Matias Fernadez Robbio.
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Renata de Castro ( linktr.ee ) é poetisa, professora, tradutora, feminista e doutora em Literatura. Tem três livros publicados: O terceiro quarto (Benfazeja, 2017), Hystéra (Escaleras, 2018) e De quando estive em Alto-Mar: poemas de afogamento e algumas mortes felizes (Escaleras, 2021). Fez parte das Antologias Poéticas Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2016), Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017), Senhoras Obscenas (Patuá, 2019) e da antologia bilíngue de poesia contemporânea de escritoras brasileiras e cubanas Sem mordaça. Sin mordaza (2021). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.