coluna | palavra : alucinógeno
poema, palavra que confunde lonjura com instante. move a estatura do que vem a ser na maturação. também conjuga partos na idade das letras pelo encontro da teoria com a construção. mas é bom dizer para quem aqui chegou agora: esta conversa não compõe uma elucidação. há conexões. juntam-se frases com evoluções de imagens, os versos, as luzes piscando no outro prédio. uma conexão entre pessoas acordadas no meio da noite, durante o dia, dentro de poemas. de poemas diferentes, de leituras diversas: livros, corpos, coisas, lugares. poesia. o movimento de quem tira o ontem das costas. as letras afiadas. as danis. as lopes. o poematuro e suas sagrações cotidianas.
poematuro
é prematuro pensar
que um poema se faz
desse jeito
de repente um escrito
umas rimas com efeito
e a pontuação assim
poesia não termina
não há ponto final
por mais que
e que o último verso seja
de conclusiva beleza
ou se deixe perecer
a tempo de recomeçar
outro verso talvez
que um poema se faz
em sua inteireza
se desfaz
como se põe e tira
a mesa
mesmo que se proponha a junção entre termos num título que congrega sentidos vários, o poema em si já seria uma aglutinação. compõe em seu destino o afeto, a afetação em quem da escuta reclama o gesto ouvinte, a fala dedicada à engenharia gramatical das frases. os versos. os cortes. o ritmo que reage à limitação ambígua, transitória, transitante pela atenuação de alicerces. o poema maduro. o poema imaturo. prematuro, em cuja composição encontra uma sugestão ao âmbito precoce da costura, a tessitura. o poematuro, de onde brilha a conjugação entre matéria escrita e tempo oportuno. o kairós. a palavra-montagem joyciana. a traquinagem neológica.
mas todo poema é antes. todo poema é agora. todo poema aponta para um futuro na invenção do que se supõe chegada. mesmo assim, o poema não chega. o poema, por mais que andante, não conclui a rota a ele incumbida. talvez seja a alucinação de quem se engana ao enquadrar versos no tempo. é prematuro pensar / que um poema se faz / desse jeito, porque um poema não tem jeito de ser feito. o poema reinaugura o formato de sua posse, a dobradura, o jogo de cintura pelo qual tanta gente se humaniza. a disposição à escuta. sua voz súbita mastiga pensamentos até que alguém finalmente ponha pra fora esse demônio. a gana de dizer com todos os dentes, com todos os dedos, com todos os orgasmos festejados pelo corpo. os humores misturados às letras. a fleuma a frase o sangue o flerte
a ginga a dança e de repente um escrito / umas rimas com efeito / e a pontuação assim. nunca me disseram como estancar uma linha, embora a gente aprenda com manoel de barros que o menino sabido de palavras foi capaz de interromper o voo de um pássaro botando ponto no final da frase. que delícia aceitar o tanto de dúvidas sobre a conjugação orgânica entre poema e pele. chega a ser excesso, a excessiva vontade de morder maior que a boca. quem sabe seja essa uma aprendizagem acerca dos limites, já que estes não impõem paragem, mas fortalecem a tensão, a dobra, a ambiguidade entre caminhos. afinal, poesia não termina / não há ponto final / por mais que
vezes há quando o poema desencadeia ele mesmo a escutatória voltagem dos reflexos. o poema não para. a gente se fecunda dessa continuidade. ainda existe o fetiche pela chave de ouro, o encerramento perfeito do verso dada a ilusão quase cristã ou quase perfeita de perfeição. estou a um triz de pedir que a gente aqui nessa leitura pare e se olhe numa orgia quântica de sentidos, sem saber o outro, sem saber quem por aqui possa passar, sem saber o saber e o que seria isso de dizer encontros. fica o desejo. e que o último verso seja / de conclusiva beleza / ou se deixe perecer / a tempo de recomeçar // outro verso talvez.
porventura outro verso. pode ser que aí exista alguém que abra a porta, que deixe o poema entrar, melhor, que deixe alguém entrar no poema. então o poema não mais seria o sujeito a interfonar pedindo que abrisse o portão, mas a metamorfose. o tornar-se lugar, a metaformose leminskiana. de repente até um jeito que lembre quando alguém se joga no chão e rola fingindo dor para findar a partida. igualmente seria esse um estratagema para se continuar o jogo com alguma vantagem. o poema seria então essa farsa, aquilo que finge findar e que continua antes do próprio recomeço. ou ainda a desconfiança de que o próximo verso recomeçado fosse o mesmo, instalado sobre o mecanismo hermenêutico da leitura.
não dá para determinar quando uma frase inicia e o gosto do suor na boca termina, difícil também é estabelecer uma teoria acerca da poesia. ela reencena a inevitabilidade dos silêncios, estes mais que fora do instável sentido da mudez. há um vozerio dentro do que se pensa vazio, há muita gente compactuando o nome de quem ainda espera alcançar a forma do poema nisso que um poema se faz / em sua inteireza, naquilo que agoniza durante a fala, enquanto a palavra sucumbe na boca, enquanto a saliva molha as letras e confundem a semântica diante de uma sintática morfologia pronunciada ao projetar os dentes pra fora da lábios. língua presa. palavras soltas. ritmo encabeçado pela pausa dos cortes. os enjambements. a teoria do poema. a prosa da melodia que faz com que os versos se prolonguem em linhas, e sempre tem alguém que pergunta a diferença entre poema e poesia, que confunde material com imaterial, que come a casca e joga a banana fora. sempre tem alguém que acende a luz da cozinha de madrugada,
que mexe as panelas e acorda a casa sem pensar que nessa frase acontece uma metonímia, e que metonímias são muito úteis para a poesia, são muito fartas para sentença do poema, e que sentença pode ser também um tiro final, um destino para o qual não há escapatória. sentença de vida que se desfaz / como se põe e tira a língua de outra boca durante os beijos em cima da mesa.
p.s. a liturgia do poema jamais poderá ser santa no sentido conservador do termo. o sacramento poemático está em sua deserção contínua dos parâmetros teóricos, os quais determinam a nomenclatura formal da poesia. juntar palavras não é novidade ao mesmo tempo em que inaugura a singularidade de ser algo dito / escrito sempre pela primeira vez, como já nos dizia Heráclito com seu rio notoriamente inédito a cada mergulho. o “poematuro” de Daniela Lopes conversa com o elo axiomático da poesia, na medida em que traz a metalinguagem para a construção do poema. e a gente sempre pergunta, e é uma dúvida que sempre me alcança: se o poema escreveu ou se foi escrito. durante o livro Ensaio para Alice (Libertinagem, 2022), a Dani continua a pergunta, e é bom que continuemos com nossas dúvidas.
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.