VISLUMBRES DO PÊNDULO ENTRE O SENTIDO E O ABSURDO – JOÃO PAULO PARISIO

Coluna | Sentido


A primeira página de Os gatos (quinze histórias extraordinárias ou ordinárias), de Rodrigo Novaes de Almeida, nos informa sobre estarmos diante de um estilo depurado e saboroso. Antes das cinco primeiras histórias, percebemos que cada uma delas é schrödingermente ordinária/extraordinária, como um exame de câncer ainda é positivo/negativo enquanto dentro do envelope. Não, o gato de Schrödinger é meramente ilustrativo. No mundo macroscópico as coisas são ou não são. Que tem com isso a literatura? Ela existe justamente para dizer que o gato na caixa está vivo e morto até que alguém constate o seu estado, ou nem assim. Uma frase de O gato guardava o homem nos diz muito do que nos aguarda no decorrer dos contos: O homem sabia para onde oscilava o pêndulo entre o sentido e o absurdo. Nós nem sempre saberemos.

Pois não pretendem essas breves histórias nos oferecer arcos narrativos clássicos e completos, mas vislumbres, rápidos alumbramentos como aquele lampejo da janela no exato momento em que a incidência da luz solar nela se alinha a nosso olhar e nos ofusca. Tentamos repetir a dose, mas a conjunção astral/carnal já acabou. Nesse momento, em lugar da ponte sobre o rio, vemos um ou alguns blocos flutuantes, como numa pintura surrealista. Se tendemos a completar as linhas, esse é um hábito de nosso olhar.

O leitor de Os gatos é como um voyeur que através de sua janela indiscreta vê lances e relances no interior dos apartamentos do edifício fronteiriço, e os gatos, mesmos/outros, mesmoutros, pulam de um conto para o seguinte, literais, metafóricos, naturais, sobrenaturais, físicos, metafísicos, como transpõem pequenos e não tão pequenos abismos na vida real em seu transe eterno de computar acontecimentos, sem exclusão de cada salto de cada pulga. Não nos engane a analogia: a paisagem urbana não é hegemônica aqui. Muito pelo contrário. Novaes está distante da urbanofilia e do tipo de realismo crítico predominantes na literatura brasileira contemporânea. Por muitos motivos, inclusive o mais agreste, ele está livre.

Em O farol, lemos que o personagem se preparava para dormir sob a montanha coberta por uma floresta temperada predominantemente de cores vermelha e amarela. Sente-se aí, ademais, uma alusão a toda uma série de descrições romanescas e cenas de filmes que integram nosso repertório estético-afetivo. O próprio personagem se sente dentro de um mundo de fantasia como em alguns romances que costumava ler. Mais adiante no mesmo conto: Eu me chamo Edgar Alcântara Pedrosa, sou o supervisor encarregado. Este é o capitão Garcia Rodriguez. Não é assim que pessoas se apresentam na vida real. É o modo como uma criança brincando faria seus bonecos se apresentarem. É o modo como eu fazia isso, e fui um grande brincador de bonecos. Passava semanas apaixonado por um cenário e época, digamos as ilhas gregas da Odisseia, para depois desmanchar tudo e iniciar uma campanha de intriga internacional cheia de espiões e pistolas com silenciadores. 

Reconheci prontamente o mesmo comprazimento no modo como Novaes varia de cenário, ou de mundo, conto a conto. Ele está brincando com impalpáveis bonecos. É o que todo escritor faz e deveria ter a honestidade de não esconder. Ninguém nos imagina para que possamos existir. Simplesmente, existimos, diz a personagem-título de Irene, a judia, apanhada pelo nosso olhar na clara contradição de ter sido justamente imaginada para poder existir. Ao criá-la assim, Novaes é generoso ou cruel? Sádico ou altruísta? Valei-nos, Schrödinger. Poucas linhas depois o narrador acusa Irene justo de barbaridade e crueldade, e elabora: suas palavras eram de fato duras, sua língua tinha a peçonha das serpentes do deserto de seus antepassados, e eu esperava beijar essa boca, mas a ideia de uma língua afiada como a lâmina de um sicário embebida em veneno me deixou atormentado.

Todas as histórias de Novaes são essa brincadeira com bonecos, mas Uma história antes de dormir, contada na cama por mamãe a Mariana tem logo ela a crueldade de um conteúdo histórico, onde a menção e a exposição da barbárie voltam a incidir, assim como no conto seguinte, Tânger, um frame de thriller sobre a Segunda Guerra e o nazismo.

O que há de indubitável sobre escritores é que são todos crianças sentadas no chão, cercadas de seus bonecos rústicos/sofisticados. Os gatos exige ser lido no espírito lúdico/lúcido das vigílias infantis, da advertência em Inferno branco: Havia bastante lenha e um aviso na parede pedia aos viajantes que, antes de partirem, enchessem novamente o baú de depósito para os próximos que viessem. No caso do livro, a contribuição de um leitor não se dirige ao próximo leitor, mas quem sabe a leitura de um autor que nos deixou, como é o caso, faça suas fibras ontológicas vibrarem em algum lugar, num múltiplo despertar, pálpebras e olhos que brotam e somem por toda parte, recompensando os vislumbres propiciados com a possibilidade de voltar a vislumbrar a insondável manifestação. Essa leitura deve ter intensidade suficiente para planger cordas em alguma região do éter luminífero.

Em A caverna contempla-se por sinal um céu de um branco estelar magnífico, pois o sistema solar atravessava o braço de Sagitário, abarrotado de estrelas. Esse cenário de ficção científica é ele mesmo o esboço de um conto que Sofia lê para Amanda no aconchego do apartamento do casal. Muito embora elas próprias formem um harmônico sistema binário, uma estrela bailando ao redor da outra sem que uma ofusque ou devore a outra, o campo ao redor é uma nebulosa e não se sabe que (e se) estrelas e planetas gerará em seu berçário cósmico. Talvez o conto se torne um romance, talvez elas tirem um ano sabático na Itália, mas Novaes retira a luneta ou telescópio de nossos olhos antes que venhamos a saber. Eis um exemplo cristalino do casamento do ordinário com o extraordinário numa mesma história, como acontece em nossas histórias, processo do qual emerge, portanto, uma fresca forma de realismo, livre das fórmulas saturadas do engajamento cabotino.

Já em No ano da passagem do cometa Halley, a luneta, aliás laranja, vai e volta no tempo. Eu tive um bom futuro, diz o personagem-narrador, que, como Irene, é mesmo um personagem, mas saído da cabeça de Caio, personagem de Um poema de páscoa, um diálogo etílico-intelectual, como os platônicos. A criatura de Caio, contudo, é também escritor, criador de suas próprias criaturas, mas um e outro estão à mercê das cartadas do destino, como o próprio Novaes viria a descobrir. Mais provavelmente, já havia descoberto, já havia aberto o envelope de Schrödinger em algum consultório, e talvez por isso tenha se decidido a incluir num livro de contos o germe de um romance que não teve tempo de escrever. Aos quarenta e três anos, game over. Escrevi as linhas acima antes de ler as que abrem, ou melhor, fecham o primeiro parágrafo de Viagem espiritual: É uma pequena coletânea de contos e decidiu publicá-la no lugar do romance que escreveu sob o impacto da descoberta do câncer no ano anterior. Por fim, nesse jogo de criador e criatura Novaes se introjeta na obra, se transforma em boneco impalpável, e logo imperecível, antes da desaparição enquanto criador: É o novo livro do escritor e editor Rodrigo Novaes de Almeida.

Naturalmente que Novaes, solerte, não deixaria de nos brindar com uma exceção a sua regra. Era uma vez… (o nome não poderia ser outro) se desenvolve como um conto de Poe, com começo, meio e fim, mas não um fim qualquer. Verdadeiro desfecho. Já o primeiro conto, Um rapaz de sucesso, nos apresenta antes um desfecho sem início nem meio, a não ser através de uma sumária rememoração em condições aliás muito adversas. O trem corre, os fatos se precipitam, a vida escorre pelo ralo. Não obstante, o conto, e portanto o livro, é aberto por mais um desses parágrafos cheios de um prazer visual demiúrgico, do deleite de imaginar montanhas, do humilde e ambicioso exercício de erguê-las no claustro (?) de nossas mentes: nas montanhas a oeste, cujos cumes luminosos confundiam-se nessa distância com as nuvens do horizonte, o mesmo rio era caudaloso e ameaçador. Montanhas e florestas e galáxias que sobrevivem à passagem meteórica do seu criador, pendulando entre o sentido e o absurdo.

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Nota da editora: Hoje, 03 de maio, seria aniversário do Rodrigo. Deixamos aqui nosso carinho e gratidão por seu impecável trabalho no cenário literário contemporâneo, como editor-chefe da Revista Gueto, e como leitor-escritor apaixonado pelas letras.

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João Paulo Parisio (@jpparisio), nascido no Recife em 4 de setembro de 1982, é autor de Legião anônima (contos, 2014, Cepe editora), Esculturas fluidas (poemas, 2015, Cepe editora), Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018, editora Patuá) e Retrocausalidade (romance, 2020, prêmio Pernambuco, Cepe editora), obras que o situaram entre os expoentes da literatura brasileira contemporânea. Apontado pelo crítico José Castello como “um dos principais nomes da nova geração de narradores brasileiros”, tem ainda textos veiculados em revistas, jornais e sites especializados.