NAHUI OLIN E A CHAMA EM MOVIMENTO – RENATA DE CASTRO

Coluna | Sibila


Independente fui, para não me deixar apodrecer sem me renovar. Hoje, independente, apodrecendo, renovo-me para viver1

Nascida Carmen Mondrágon, em 1893, no México, Nahui Olin foi modelo, pintora e poetisa. Pertencente a uma família de posição social confortável, viveu a primeira infância na França, quando seu pai, militar, foi nomeado para uma tarefa no continente europeu. De volta ao México, deu continuidade a sua educação francesa em uma escola católica para moças. 

No colégio francês, aos dez anos, Carmen já escrevia, em língua francesa, as reflexões que viria a publicar, quando adulta, em dois livros – Câlinement je suis dedans (1923) e À dix ans sur mon pupitre (1924). Isso só foi possível graças à diretora da instituição onde Carmen estudara, Marie-Cresence, que, ao perceber que os escritos da menina eram singulares, sobretudo por sua pouca idade, guardou seus cadernos e só os devolveu cerca de duas décadas depois. O trecho abaixo compõe a obra À dix ans sur mon pupitre [Em minha escrivaninha, aos dez anos]. Por não ter acesso ao original, vali-me de uma tradução para o espanhol – a qual traduzi para o português – feita por Rocío Luque. O texto espanhol compõe o livro Nahui Olin Sin Principio ni fin Vida, Obra, y Varia Invencion, escrito por Patricia Rosas Lopátegui.

Sou um ser incompreendido que se afoga no vulcão de paixões, ideias, sensações, pensamentos e criações, que já não podem ser contidos em meu seio. Estou, pois, destinada a morrer de amor, do único amor para o qual minha alma foi criada, para alimentá-lo e ao qual devo ser a mais fiel vestal em meu templo sagrado de amor.
Mas o que digo?! Sou feliz e não sou. Por que não sou? Não sou feliz porque a vida não foi feita para mim, porque sou uma chama devorada por si mesma e que nada pode apagar; porque não vivi com liberdade a vida, privando-me dos direitos de saborear os prazeres, sendo destinada a ser vendida, como escravas em outros tempos, a um marido. Protesto, apesar de minha idade, por quem está sob a tutela dos pais.
[…]
Assim, a mulher se converte em um problema social bem resolvido para a conveniência dos governos e dos costumes. 
Por que a liberdade e a ilusão foram criadas para qualquer homem ou ser vivente, se eu não tenho direito a elas? Por que fui criada consciente do que me pertence?

De todo o texto, o que me parece mais incomum a uma menina de dez anos é o fato de ela ter consciência de sua condição, de sua falta de autonomia. Embora fosse cheia de vida, um ser apaixonado, passava ao largo das mentalidades românticas impostas às meninas como forma de docilizá-las. Carmen não era dócil, tinha um espírito selvagem e sedento, como se pode confirmar, ainda da obra já mencionada, no trecho a seguir:

[…] Agora percebo que sofro e sou sensível a tudo, tenho sede de tudo o que é belo, grande e embriagador. Com um ardor extremo, uma ilusão louca de juventude e de vida, quero fazer vibrar meu corpo, meu espírito até os últimos sons.

De fato, Carmen teve uma vida cheia de eventos impactantes e, muitas vezes, escandalosos para a sociedade mexicana da primeira metade do século XX. Desde um casamento aparentemente forçado com o cadete e pintor Manuel Rodríguez Lozano – com quem teve um filho cuja morte ainda bebê é cercada de dúvidas –, passando por intensos relacionamentos amorosos com artistas até a recusa de participação em filme hollywoodiano por não querer seu corpo objetificado. 

Inconformada com a condição da mulher, seu discurso em defesa da liberdade feminina foi contínuo. Em Óptica cerebral: poemas dinámicos (1922), encontra-se o poema El cáncer que nos roba la vida, do qual destaco o seguinte excerto: 

O câncer de nossa carne, que oprime nosso espírito sem que nos tire a força, é o famoso câncer com que nascemos, o estigma de mulher. Esse micróbio que nos rouba a vida vem de leis prostituídas de poderes legislativos, de poderes religiosos, de poderes paternos […] 

Esse inconformismo com o estabelecido, a inquietação diante da vida e o desejo de sorver o mundo que a moviam fez com que uma de suas grandes paixões, o pintor Gerardo Murrillo, a batizasse de Nahui Olin. No calendário da cultura náhuatl, nahui olin é o quarto movimento do Sol. Assim, a força ígnea Carmen Mondrágon assume o novo nome a partir da década de vinte, mais condizente com seus movimentos de mudança e sua Insaciável sede:

Meu espírito e meu corpo têm sempre louca sede
desses mundos novos
que vou criando sem cessar,
e das coisas,
e dos elementos,
e dos seres
que têm sempre novas fases
sob a influência de meu espírito
e meu corpo,
que têm sempre sede,
inesgotável sede de inquietude criadora
que joga com mundos novos
que vou criando sem cessar
e com as coisas que são uma e são mil
[…]
e dessa sede admirável nasce o poder criador
e é fogo que não resiste a meu corpo
que, em contínua renovação de juventude de carne
e de espírito
é único
e é mil
pois é insaciável sede
e meu espírito
e meu corpo têm sempre louca sede.

Aqui preciso fazer um parêntese que me persegue desde que comecei a pesquisar sobre Nahui Olin. É-me impossível não ver em seu nome de batismo o fogo, o ar e a força. Explico. Em Carmen, leio carmim, vermelho. Em Mondrágon, leio meu dragão (numa mistura de línguas latinas, admito). Fez muitos trabalhos como modelo, posando tanto para pintores como para fotógrafos. Era dona de uma beleza impactante, marcada por olhos verdes especialmente expressivos. Diferenciou-se do padrão de modelo por assumir a coautoria das fotos. Apesar de ter sido muito fotografada e pintada nua, o que ela explorava de si era a expressão artística corporal e não a sexualidade objetivamente, como se pode ler no poema Poso para os artistas:

Eu poso para os artistas que fazem quadros sempre novos,
quando poso
e todas as vezes eu sou outra coisa que eles ainda não tinham visto
e eles se atormentam com novos quadros
que pintam para fazer uma coisa só
que é meu espírito derramado em meu corpo escapando-se por meus olhos
e eles se atormentam com razão fazendo novos quadros
quando poso
e sempre acrescento uma coisa nova
que é meu espírito derramado em meu corpo
saindo por meus olhos
para posar para os senhores que fazem sempre comigo
novos quadros.

Neste poema, Nahui revela liricamente o processo artístico de tentativa de apreensão daquilo que é mais profundo no indivíduo. Por serem seus olhos muito expressivos, era por meio deles que os artistas buscavam captar a vazão de seu ser. Entretanto, o sujeito lírico afirma a impossibilidade de apreensão, pois que ele é sempre outro a cada vez que posa. 

Assim como Heráclito, que refletiu sobre ninguém se banhar duas vezes no mesmo rio, a poetisa fala sobre nunca ser a mesma em cada quadro. O rio muda de modo constante, pois é de sua natureza fluir; e o indivíduo igualmente. O pintor muda; da mesma forma, a modelo. Nahui Olin tinha o entendimento do movimento, do princípio eros.

Durante o período em que posou, escreveu e pintou – e ainda hoje em dia, em alguns discursos da televisão mexicana, segundo a escritora Sandra Lorenzano –, Nahui foi entendida como a musa dos grandes pintores de sua geração, que escandalizava e transgredia os costumes com sua nudez. Não surpreende que Olin tenha passado por uma leitura de sexualização de sua postura artística erótica. Todavia, esta visão não se sustenta quando se sabe que ela também se retratava, em um processo de criação artística, criação subjetiva e autoconhecimento.

Quero esvaziar em mim mesma até os últimos sumos das belezas das obras de arte humanas; sim, quero sentir o que todos sentiram. Depois de ter aprendido, há que se aprender, sempre. Eu morreria de dor se eu fosse privada desta vida intelectual, de toda fonte de filosofia, poesia, juízo, estudo, raciocínio; certamente, eu morreria seca como uma planta sem ar.

Destaco especialmente o trecho depois de ter aprendido, há que se aprender, sempre. Como aponta Anne Carson, em Eros o doce-amargo, é a falta que anima eros, “é seu constituinte fundamental”, é a sede de Nahui. A força que faz com que o eu se lance rumo ao desconhecido é uma força erótica, esteja ela em uma experiência sexual ou em um processo de aprendizagem do mundo ou de si.

“Quem ama aprende, à medida que a perde, a valorizar essa entidade limitada que é o eu”, escreveu teoricamente Carson e, liricamente, Nahui, em uma compreensão erótica do que é ser humana:

Agora sei que amar é gozar,
é sofrer,
ao mesmo tempo
sei que o prazer vem de um desejo
de deixar sair
um pouco de nosso infinito
por nossa carne embriagada do prazer do espírito
que deixa sair o desejo
que é um prazer embriagador
e faz gozar,
sofrer
e ao mesmo tempo,
sofrer,
chorar,
muito tempo
pela humanidade que
vem de um desejo de prazer que faz sofrer,
gozar
ao mesmo tempo
e sei que amar
é a humanidade.

Estigmatizada, depois da morte de seu companheiro Eugenio Agacino, Nahui Olin foi paulatinamente se isolando – ou sendo isolada. Morreu em 1978, tendo passado quase quarenta anos afastada da cena artística mexicana.  

_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
1 Trecho do poema Sobre mi lápida.

_______________________
Renata de Castro 
( linktr.ee ) é poetisa, professora, tradutora, feminista e doutora em Literatura. Tem três livros publicados: O terceiro quarto (Benfazeja, 2017), Hystéra (Escaleras, 2018) e De quando estive em Alto-Mar: poemas de afogamento e algumas mortes felizes (Escaleras, 2021). Fez parte das Antologias Poéticas Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2016), Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017), Senhoras Obscenas (Patuá, 2019) e da antologia bilíngue de poesia contemporânea de escritoras brasileiras e cubanas Sem mordaça. Sin mordaza (2021). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.