Coluna | Alguma coisa em mim que eu não entendo
# à mãe
quando o tempo
se dobra em nó
e esgoto exausto
todos os livros
os copos de uísque
os alentos do sexo
e o que mais couber
na dor quente
de adiar a morte
é o colo dela
(calmo e ávido)
que existifica
o instante seguinte
e seu milagre
: lograr o espanto
— puro poema
em seco pranto —
de adiar a morte
não sei mais quanto
#
vê-se a mãe
em seu ofício novo
de fazer-se avó
dizer aos olhos
chorosos sobre si:
tudo a seu tempo
e de dentro
da própria
palavra tempo
(pairando
parada no ar
abrindo-se em
alçapões)
surge um coringa
a borrar a tinta
e sussurrar
a(o) tempo: tudo (é) seu
#
o mar cantou-me
com sua voz talhada
em rugidos de mãe
uma canção
sem música
toda memória
(submersa)
sobre um barco
que se perdeu
simplesmente
porque perder-se
é um direito dos seres
#
deito no colo da serpente
há uma sombra d’água em seus olhos
pergunto à mãe (nem sempre mente)
quando surgiu a mulher?
quando a mão das nuvens
grão semente
abriu em raio o igarapé
rachou em cinco
os eletromagnetismos
e deu à língua dos símios
o poder de conceber
a palavra que se quer
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Thássio Ferreira é escritor, autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016), Itinerários (Ed. UFPR, 2018), agora (depois) _(Autografia, 2019) e Nunca estivemos no Kansas (Patuá, 2022). Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Germina, Revista Ponto (SESI-SP), aqui na Vício Velho, InComunidade (Portugal), e outras. Seu conto _Tetris foi o vencedor do Prêmio Off Flip 2019, e seu livro inédito Cartografias, finalista do Prêmio Sesc 2017. Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Mantém página no Facebook e o Instagram