Coluna | Sentido
A vida, Abujamra,
a vida é o martelo.
Nós a lâmina
ainda mole,
mas quando rija, temperada?
Improntos a morte nos acolhe.
E como poderiam ter eficácia
as chaves de seu insensato molho
se as portas ainda não foram criadas,
nem contra as ressacas, molhes?
Como se quer que o barro
ainda uma vez não se molhe
e nunca fique próprio
para o abraço da fornalha?
Ele se coze assim mesmo
e o tijolo resultado não serve
para erigir nenhuma muralha.
Uma vez vi um fantasma na sala
e sua testa calva proverbialmente
refletia a luz da lâmpada
sem nenhuma afronta à física ótica.
A vida é essa insônia epistemológica
das leis que não nos permitem levitar.
Que nos obrigam também a morrer.
O fantasma era o meu reflexo
delineado no vidro da varanda.
Não, o fantasma era eu,
que por um segundo me testemunhava,
por um segundo estremunhava
do longo sono da identidade
e olhava de fora a coisa dada
mas a visão se desfez para sempre
como sói às revelações do gênero.
Ficou a lembrança como uma casca
agarrada à árvore, de uma cigarra.
Quando fecho os olhos ainda hoje
não posso figurar meu rosto.
Sei-o tão bem
que sou incapaz de exteriorizá-lo
até perante mim,
meu suposto alguém.
Ainda que o cristal perplexo
agora mesmo o devolva,
mal me volto para a tela,
o tempo torna a dissolvê-lo.
Está envolto em névoa
como uma máscara mortuária indescoberta
no labirinto indevassável da floresta.
A vida o envolve
e de mim o oculta
como uma relíquia perigosa.
Abujamra, isso é a vida.
A vida, Abujamra,
é uma pintura autorreprodutível.
A vida, Abujamra,
é uma imersão de seres
de outra ordem em nossa realidade,
ou essa intuição em um místico.
A vida, Abujamra, é assim.
Cada um vai carregando os seus mares.
A vida, Abujamra, é muito bem-feita.
A música é uma dádiva,
mas depois de horas enjoamos
e o silêncio se torna balsâmico.
A vida, Abujamra, a vida é isso.
É banana que não amadurece.
É banana que amadurece rápido demais.
É até banana que amadurece no tempo certo,
mas aí só estávamos lá
antes
e tarde demais.
A vida, Abujamra, é miserável
e sagrada
(afortunada é um antônimo fraco)
como os lados de uma máscara
são inseparáveis, saldunes.
Não há fora sem dentro.
Jung tinha uma palavra
que herdou-a de Heráclito
mas é escabrosa demais
para a reprodução impune
e elucidava isto.
Pra uma peça de teatro,
a vida, Abujamra, é longa demais.
A vida é prosa, prosaica.
A vida, Abujamra, é o DNA no caduceu.
A vida, Abujamra, parece ser sua,
mas ela é que te usa
trocando imperceptivelmente
a ordem das letras
no contrato do destino
que sobretudo unilateralmente
subscreveste.
Por isso a vida cruza os braços.
Por isso a vida lava as mãos.
Diferente do diabo,
ela não te tentou.
Ela não tentou nada.
A vida, Abujamra,
é a crueldade que engendra a misericórdia.
A vida, Abujamra, é curta
e não há claras benesses
para quem a perscruta
a não ser a paixão do escrutínio.
A vida, Abujamra, é uma taça de cristal
suportando o agudo do tempo
por alguns milissegundos.
A vida, Abujamra,
é um permanente massacre de plumas.
A vida, Abujamra,
é a sobreposição de depreciação e benfeitoria.
A vida é longa.
Curta é a memória.
Grande é a inércia.
A vida é curta demais
para a palavra exata.
Viveiro de contradições.
A vida é um indivíduo.
A vida é filme que te aliena.
E não há bom entretenimento
se os personagens são felizes.
A vida é real.
As coisas têm peso.
A vida é eterna.
A vida é o voo de um ovo.
A vida é seu inferno.
A vida é uma corrente que se testa o tempo todo,
malgrado o sono.
A vida é inventada
e isso não é literatura.
A vida é uma célula,
um conceito e sua ilha
cercada de não-ela.
A vida é sempre uma merda,
mas uma merda de chocolate, Abujamra.
A vida é real como uma ficção
é real para os fictões.
A vida é uma magravilha.
A vida é uma roleta russa,
o tambor do revólver
prolongado em montanha.
A vida é um filtro,
como se um sururu soubesse
que é o Capibaribe
como o Aleph é o universo.
A vida é com efeito
a joia mais valiosa da eternidade
(do ponto de vista dos vivos,
que é um ponto de vista válido).
A vida é o maior pecado das pessoas.
A vida é uma descendente de fumarolas
ao longo de falhas tectônicas
no fundo dos oceanos
que ainda hoje estão lá
embora nunca cheguemos a visitá-las
como nas estórias de Trancoso.
A vida é o beijo da denotação e sua detonação,
a metáfora, que só podia ser proparoxítona
como relâmpago, âmago, trêfego.
A vida é a testemunha das estrelas.
A vida é um sonho asfixiante.
A vida é uma aporia
e não se sabe quem a pôs na mesa.
A vida é um cerco de décadas.
A vida é uma distensão paroxística
do influxo cósmico.
A vida é o devir
banhando-se em si,
pois já havia ondas
antes dos micro-organismos
que flutuam nas ondas.
A vida é uma tecnologia conceitual absurda.
A pedra não sabe.
O gato sabe
mas não sabe que sabe,
por isso é impecável.
O ser humano sabe que sabe
(daí nasce o pecado
e o fatal nome da espécie),
mas sabe que sabe que sabe?
A vida, Abujamra,
é os cordéis sobreviverem ao bonequeiro,
esse boneco.
A vida, Abujamra, são os intransitivos corcéis
num estourar indiferente a nós,
muito mais livres,
traçando na pradaria seu móvel glifo.
A vida, Abujamra, é você provocar este poema
posterior ao quebrar da tua jarra
e ao libertar da cativa manada
que em frenesi desencontrado nos habita
e gera nossos pensamentos em saldo
quase como um resíduo.
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João Paulo Parisio (@jpparisio), nascido no Recife em 4 de setembro de 1982, é autor de Legião anônima (contos, 2014, Cepe), Esculturas fluidas (poemas, 2015, Cepe), Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018, Patuá), Retrocausalidade (romance, 2020, prêmio Hermilo Borba Filho, Cepe) e Beija-flor (contos, 2022, Vacatussa), obras que o situaram entre os expoentes da literatura brasileira contemporânea. Apontado pelo crítico José Castello como “um dos principais nomes da nova geração de narradores brasileiros”, tem ainda textos veiculados em revistas, jornais e sites especializados.