Coluna | Palimpsesto
Minha prima, que hoje mora na França, tem guardada nossa correspondência trocada durante nossa infância e adolescência, nos longínquos anos de 1980 e 1990. Trata-se de inúmeras cartas escritas por nós, crianças, em um mundo sem internet, quando o tempo era outro. Hoje talvez não faça sentido escrever um romance epistolar, mas sinto falta deles, e aqui começo minha raspadinha.
“A técnica epistolar era pouco usada nas literaturas do tempo […] depois de ter tido o seu grande momento no século XVIII e algum relevo no seguinte” é o que afirma Antônio Cândido na apresentação do livro A correspondência de uma estação de cura. O livro é justamente um romance epistolar escrito por João do Rio após sua estada em 1917 em Poços de Caldas, que, no início do século passado, era a mais famosa estância brasileira, visitada por artistas, políticos, enfim, pela elite da época. Narrado inteiramente por cartas escritas por visitantes da cidade – em sua maioria, hóspedes do Grande Hotel – que não foram enviadas ao seu destinatário (o que me lembra Paul Celan, e a tal da mensagem na garrafa enviada ao mar), o livro desvela-se interessante por seu caráter inovador.
Opa, disse inovador? Como assim, isto é uma raspadinha, Vera! Ao que me retrato aqui: é de alguma forma inovador, sobretudo pelo fato de as cartas não terem chegado ao seu destino final, porém, sua leitura, leve e gostosa (saborosamente inatual, como bem o disse Antônio Cândido) me remeteu de imediato ao Ligações Pegrigosas de Laclos, principalmente pelo que o livro tem de mais especial: um mesmo fato narrado sob diferentes pontos de vista, no caso, diferentes vozes inscritas em missivas (e, com efeito, a cada epístola, uma voz diversa), claro, no romance de João do Rio (antes de tudo, grande repórter das ruas do Rio de Janeiro da Belle Époque) este artifício é mais acentuado. Outra semelhança: a Maria de Albuquerque e Olivério Pereira Gomes em muito me lembraram Marquise de Merteuile e o Visconde de Valmont de Ligações Perigosas. Para quem já leu ou vai ler o romance de João do Rio fica aqui minha pequena provocação: seriam também Maria de Albuquerque e Olivério ex-amantes? E para as minhas raspadinhas, outra provocação em uma pergunta retórica: não pode um palimpsesto ser inovador?
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Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger. Mantém uma coluna na revista Vício Velho.
Imagem @Melinda Josie