Minha cara praticante,
Sinto que estamos deixando passar uma oportunidade única para olhar os nossos equívocos e mágoas. Mas por motivos que o meu entendimento não alcança, há um movimento que busca justificativas e explicações mirabolantes para aquilo que está dado. Não podemos lutar ou negar a nossa natureza humana que é, por definição, falha. O custo de reconhecer a nossa humanidade parece ser muito alto.
O nível de negação me leva a pensar que não somos capazes de tomar a delusão como parte do caminho. Sim, querida. A delusão. Aquela que todos falam, mas ninguém quer olhar. Aquela que faz o castelo ruir, e nos faz ficar gastando energia tentando segurar as ruínas. Não importa o esmagamento dos mais vulneráveis na base da construção (mulheres e crianças, caso haja dúvidas). Podemos colocar isso tudo goela abaixo porque o nosso castelo não pode desabar. E assim, escolhemos não olhar para o que verdadeiramente importa, porque as nossas dores parecem ser mundanas demais para o castelo.
Você sabia, cara praticante, que para que nós duas possamos sentar em silêncio frente ao altar, muitas mulheres precisaram cavar um espaço na história? É uma dolorosa contradição essa que habitamos pois desejamos ter acesso aos ensinamentos e continuar a nossa prática de maneira segura, mas parece que o castelo não foi feito para nós. Agora, se não fossem aquelas praticantes que arranharam um espaço nos templos (como praticantes e não como cozinheiras), como nós poderíamos sequer estar aqui?
A vitimização nos des-potencializa, nos inibe da ação. Como podemos procurar por justiça e paz? Como podemos criar um espaço para praticar em segurança, um lugar onde não seremos assediadas, objetificadas ou sexualizadas?
Quando vejo o castelo ruindo, não sinto a urgência de correr para resgatá-lo, porque meu anseio mais profundo é que as virtudes prevaleçam. Gastamos tempo precioso da nossa vida cultivando uma erudição que, diante das crises, apenas nos serve para esticar a verdade. Não quero esticar a verdade, minha cara praticante. Quero que ela prevaleça. Para que serve a erudição se não sabemos praticá-la com sabedoria?
Quando vejo o castelo ruindo lembro de todas aquelas praticantes que viraram andarilhas nesse mundo, que sofreram o ostracismo nas suas comunidades por pensar demais. E tiveram que continuar as suas jornadas em autonomia e liberdade.
Como continuar, cara praticante?
Com afeto,
Valen
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Valentina Bascur Molina é pesquisadora, poeta, escritora e tradutora. Mestre em Estudos Feministas pela UFBA. Nasceu e cresceu em Temuco, território de Wallmapu, Chile. Reside no Brasil há nove anos. Autora de “Kümedungun: trajetórias de vida e a escrita de si de mulheres poetas Mapuche”, publicado pela Editora Urutau, selo Margem da Palavra, em 2021. Integra o Núcleo Feminista de Dramaturgia, espaço em que desenvolve projetos de escrita e pesquisa coletiva com outras autoras, sob orientação de Maria Giulia Pinheiro.
Imagem @Melinda Josie