Coluna | Anseios Crípticos
“Quando se vê, já são seis horas…”. Meu irmão dizia: “Augusto, por que essa urgência toda?”. A gente quase não se via calmamente para conversar. Sendo eu o seu único irmão, mais velho, ele me demandava atenção. Suplicava para almoçarmos nas sextas-feiras, e eu sempre atulhado com os problemas da faculdade. Não ia com regularidade. Faltava mais que ia. E ele, invariável, mandava uma foto do copo de cerveja, suando, ou “chorando” a minha ausência. “O que pode ser mais importante que a família, Augusto?!”. Eu confirmava, inerte, as suas indagações. Logicamente, eu estava errado. Na faculdade, pelo carinho que os colegas guardam por mim, deliberaram, há anos, me colocar em atividades administrativas de coordenação – para resolver os seus pepinos. Às sextas não há aula, é verdade. Em regra, eu estaria livre para aproveitar a tarde de sexta e emendar no fim de semana. Faltando dois dias para a fatalidade, Renato foi me buscar na faculdade, trancando, ele mesmo, a minha sala. “É uma ordem!”. Ele me pegou pelo braço e me levou ao seu carro, para primeiro me presentear com um uísque cinquenta anos. “Não é desse que você gosta?”. Depois me liberou para que o seguisse com o meu carro. Fomos ao Raimundo dos Queijos, nosso canto predileto. Começamos a aventura às 17h, quando os boêmios aportavam cheios de crepúsculo nas costas. Tomamos a cervejinha de lei e provamos algumas cachaças envelhecidas e empalhadas. Raimundo nos mostrou a que ganhara um prêmio nacional, fabricada em São Gonçalo do Amarante, que para mim foi uma surpresa; uma delícia. Laura, minha filha, me ligou para saber se estava tudo bem; disse que sua mãe notara a minha falta “súbita”. Fui ao banheiro para ouvir o recado de Deusa no WhatsApp. Ela tem a mania de desfazer os meus encontros. Para não gerar animosidades, escutei só a ladainha: “Augusto, não vá enveredar no dia. Isso é muito perigoso. Como você virá assim? Dirigindo? Renato não tem nada a perder. Só pensa em farra. Você tem família…”. Ficamos até o raiar do dia. Renato saiu de Uber, e disse que pegaria o carro depois. Eu o deixei com um aperto no coração. Era como se o tempo o arrancasse de mim. No domingo, às 10h, Lucinha, sua ex-esposa, ligou dizendo que ele tinha sofrido um acidente grave; que estava no hospital, morre-não-morre. Corri para o Frotão. O médico pediu para que os familiares se despedissem, assim, na lata. Caí de joelhos. Chorei absurdamente, como um louco. Logo foi constatada a morte cerebral, às 19h. Renato, mais que eu, tinha sede de viver. Não queria perder um minuto ao meu lado. Se pudesse, moraria comigo. Lembro-me, agora, do poema de Mario Quintana na voz de Antonio Abujamra, e choro de dor e arrependimento. Como eu queria ter jogado pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.
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Adriano Espíndola Santos (Instagram | Facebook) é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
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Referências
Antônio Abujamra declama Mário Quintana. Disponível aqui. Acesso em: 23 maio 2023.
GUIMARÃES, Leandro. Mário Quintana. Disponível aqui. Acesso em: 22 maio 2023.
O Tempo – Poema de Mário Quintana. Disponível aqui. Acesso em: 22 maio 2023.