O BEIJO – VALENTINA BASCUR MOLINA

Coluna das Ausências


Papá não costuma ficar muito tempo na mesa depois do almoço, sempre está com pressa. Mesmo aposentado, procura uma e mil atividades para fazer: atender seus clientes da contabilidade, participar das atividades da igreja, viajar para o interior para reparar algum portão no sítio. Assim têm passado seus anos de velhice. Ocupado.

Durante a minha infância foram poucas as oportunidades de tê-lo presente em casa. A sua rotina de trabalho era extenuante, e os finais de semana eram dedicados ao Senhor. Digamos que as formas para tratar seus filhos nem sempre têm sido afetuosas. São, na verdade, brutas. Papá é um homem velho, criado no interior, com um pai violento e uma mãe submissa. O que poderia sobrar para nós?

Felizmente, com o nascimento dos netos, seu coração se amoleceu. Eles vieram reivindicar esse afeto todo que não tivemos.

Nunca ouvi ele falar ‘te amo’, mas com as crianças, aquelas palavras sagradas saem naturalmente da sua boca. Não reclamo. Fico feliz, na verdade. Pois quem ganha anos a mais nessa vida, é quem ama.

Aquele dia estávamos sentados os três à mesa. É provável que mamá tenha feito algum caldo com muitas batatas e pouca carne. Papá comeu rápido como de costume e arrumou uma desculpa para sair logo da mesa.

Combinei de me encontrar com fulano no centro, deve ter dito.

Rapidamente escovou os dentes, passou perfume e colocou a jaqueta. Fiquei observando-o na sua pressa e vi que a jaqueta estava completamente desajeitada.

Espera aí, papá! Deixa arrumar um negócio aqui.

Me aproximei e tentei acomodar a parte do pescoço, que sempre fica enrolada com todas as camadas de roupa que usa por baixo para aquecer seu corpinho.  

De repente, senti um curto-circuito no meu cérebro. O tempo parou, e eu, completamente desconcertada, não consegui compreender de imediato o que tinha acontecido.

Em segundos me recompus e percebi que papá tinha me surpreendido com um beijo estrondoso na bochecha. Fiquei parada, atônita. Perdida nessa expressão fugaz de amor. Tão rápida e espontânea que nem consegui capturar.  

Logo, ele soltou uma gargalhada brincalhona e foi embora. Sagaz, como sempre. 

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Valentina Bascur Molina é pesquisadora, poeta, escritora e tradutora. Mestre em Estudos Feministas pela UFBA. Nasceu e cresceu em Temuco, território de Wallmapu, Chile. Reside no Brasil há nove anos. Autora de “Kümedungun: trajetórias de vida e a escrita de si de mulheres poetas Mapuche”, publicado pela Editora Urutau, selo Margem da Palavra, em 2021. Integra o Núcleo Feminista de Dramaturgia, espaço em que desenvolve projetos de escrita e pesquisa coletiva com outras autoras, sob orientação de Maria Giulia Pinheiro.

Imagem: Nathalie Ouederni