Saiu há pouco, neste ano de 2023, o livro Imago, de Fernanda Spinelli, publicado pela Editora Nauta. Poderia apenas dizer ser um trabalho firmado na imagem, mediante a interlocução com o aspecto surrealizante presente nos poemas, o que se justificaria pelas combinações improváveis entre palavras ou as rimas internas em função de uma dissonância imagético-sonora. A essa entonação singularmente retesada chamaria de tensão harmônica entre imagem e som. Mas por desconfiar de que seriam colocações um tanto óbvias, fui procurar outras profundezas, a fim de amadurecer algumas provocações nascidas com a leitura do presente livro.
Ao longo da minha formação acadêmica, em alguns momentos ouvi e li de meu orientador que uma imagem é um dizer sonoro do silêncio. Por outro lado, na famosa entrevista que Guimarães Rosa concedeu a Günter Lorenz, o autor de Grande sertão disse que cada palavra é um poema, segundo sua essência. Pois bem, e o que essas referências teriam a ver com o livro da Fernanda?
Considero bem plausível dizer que a acomodação entre silêncio e sonoridade, assim como entre palavra e seu genoma poético, se enviesam pela disputa tensional desses encontros. No caso deste livro, desde o título – Imago –, passando pelo poema homônimo que o inicia, é possível perceber um arranjo poemático em que por vários momentos a questão da imagem se evidencia, dando-se tanto visual quanto sonoramente – por exemplo, em poemas como “Caixa-preta”, “Quo vadis?”, “Ex-satélite”, “Poema botânico”, “Ponto de intersecção”, “Zero Fahrenheit”, entre outros. Eu diria que esse aspecto é um dos quesitos particularizantes deste trabalho, o que me leva a considerar a corrupção customizada entre imagem e som, derivando na autodevoração espacial, a qual será mais bem explicada abaixo. Por agora, fiquemos com a tensão imagético-sonora.
Imago não seria apenas a tradução de imagem para o latim, mas também a concepção jungiana para algo tanto inacessível quanto simultaneamente originário de um modo de ser, a saber, o arquétipo, as imagens primordiais. No entanto, creio que para nos permitirmos invadir pela tensão que elas provocam, torna-se necessária a imersão na leitura da obra em questão, de maneira atenta às provocações que a suposta surrealização de suas imagens provoca. Digo “suposta” não por desmerecer a artesania imagética da autora, e sim por ter noção de que isso que estou chamando aqui de aspecto surrealizante teria mais a ver com a incorporação tensional da imagem cindida e, por desdobramento, com o que ela pode gerar na recepção de leitores e leitoras.
Ao se considerar a imagem como um dizer sonoro do silêncio, somado à perspectiva de que a palavra essencialmente seria um poema, em Imago a imagem nascida desse jogo se daria dissimuladamente. Isto é, mantém-se o caráter desafiador de um poema que se manifesta muito mais por seu silêncio. Nesse caso, vale ressaltar que essa afirmação silenciosa não significa taciturnidade, mas diz respeito ao poema grávido de possibilidades sonoras. Na verdade, seria o caso de pensar que o poema fala na quietude de sua escrita. E um poema falar quer dizer a correspondência com a linguagem, realizando-se na pessoa que o lê; o que, por sua vez, desencadeia modos mais profundos de compreensão da leitura, da escrita e da escuta, primordiais na interpretação poemática. Na verdade, a confabulação dessas dinâmicas seria vital para a interpretação do real; portanto, para a nossa interação com o que conforma nosso caminho durante o exercício da realidade e de seus diversos modos de apresentação.
Penso que do primeiro ao último poema acontece a narrativa cindida e cismada de uma contação especulativa que tende ao sonho, compreendendo-se narratividade em seu âmbito originário, isto é, o vir a conhecer naquilo que se diz. É importante ainda apontar que o especulativo aqui se refere à etimologia de espelho – speculum – e não à acepção atribuída ao verbo especular, no sentido de investigar. Se bem que a perspectiva investigativa não deixa de ser bem-vinda, desde que se mantenha a copertença com o imagético provocativo da poética que ora se apresenta.
Se observarmos mais detidamente a estrutura de Imago, o primeiro poema, homônimo ao título, anuncia uma partida: “São 5:15, os anjos se foram / voando pelo furo da noite”; e este verso será retomado no último poema: “São 5:15 outra vez”, cujo título – “Sonho” – reafirmaria o embasamento onírico para a desenvoltura da poética de Spinelli. Então, no diálogo entre os dois poemas, desde “Imago” encontramos as chaves de leitura responsáveis pela complexificação espacial mencionada mais acima. Os versos “Rumo dentro de um furo dentro de um furo” e “Um túnel, entro em um túnel dentro de um túnel” incitam a aludida devoração espacial, o que suscita a imagem do ouroboros em função da constância imbricativa de destinos, alargando-se para caminhos em que passado, presente e futuro se propõem tensamente equalizados num acontecimento poético-tempo-espacial.
Já em “Sonho” encontramos: “Um muro fora um rumo fora eu sumo”. Interessante notar que “muro” e “rumo” formam um anagrama no qual ambas as palavras quando conjugadas, inicialmente, trazem a ideia de oposição. Assim, “muro” se referiria ao estancamento, ao empecilho; enquanto “rumo” diria respeito ao prosseguimento, destino. Desfeito o antagonismo preliminar, faz muito mais sentido depreender a ambiguidade surrealizante dos termos, o que poderia sugerir um ataque à concepção linear da leitura. Indo mais adiante, é possível perceber a ambiguização dos termos por estes outros versos do mesmo poema:
o que ganho, o que perco,
os anos em tubo de ensaio, a organização do baralho,
os jogos de encaixe, as danças nos bailes
saem de um túnel fora de um túnel rimam do túnel.
Como imagem espelhada ao infinito, qualquer possibilidade maniqueísta seria quebrada, principalmente em atenção ao último verso. Neste, as metáforas indicativas de vitórias conquistadas ou perdas vividas são conduzidas a distorções imagéticas, em que o “túnel” poderia ser uma alusão aos buracos de minhoca, isto é, imagem-questão usada na física para se referir ao contínuo espaço-tempo (ou às populares viagens temporais). Por essa menção, parece haver a sugestão de que a linearidade temporal é posta em xeque, numa provocação em que se pretende a proposição de uma percepção singular do tempo neste trabalho da autora.
O que se coloca desde o primeiro poema em relação ao que chamei de autodevoração será expandindo ao longo dos demais, com algumas retomadas no sentido de firmar uma solidez quanto à proposta do livro. Por exemplo, é o que se pode perceber neste trecho de “Meia-noite em transe”, cuja imbricação se volta para a própria voz poética:
Através do teu caminho, enxergo processos,
círculos em cambalhota,
pontos em circulação, vírgulas em rodopio,
em alguns te enxergo, n’outros crio
tu, tu, o teu porvir pulsando em ebulição
na retina do meu olho
No poema “Os sons de todas as coisas”, encontramos o seguinte: “flertará com deus, até ultrapassar a flecha Moira, / e enfim, à toa, ouvirá os sons de todas as coisas”. Nele se observa a letra maiúscula em “Moira”, sugerindo uma atenção maior a essa palavra. Se lembrarmos da acepção mítica do termo – vindo do verbo grego meiresethai (repartir, obter ou ter em partilha) –, dá a entender a compreensão do destino (moira) tanto em relação ao que é atribuído a cada um de forma inalienável, o quinhão; quanto em referência àquilo que se modifica mediante sua apropriação. Neste caso, o destino seria o que se origina a cada instante, a partir das escolhas assumidas.
No poema “Criação”, encontramos o verso “pois te conheço por dentro: sou o que és, és onde estou”. Aqui, penso que a imbricação diz respeito à participação da voz poética nas consequências do acolhimento em ser com o outro, assumindo ativa e passivamente a realização do real em tensão com o existir. Realização que se mostra condizente com a imersão da voz em seu âmbito multiperspectivo. Por essa dinâmica, avista-se a própria alteridade, no sentido de fazer jus à existência pelo crivo da ambiguidade. Simultaneamente, esse entendimento diz respeito a ser e a ocupar o lugar de ser, cuja identidade, por si, já carregaria o desdobramento personativo em função das várias facetas que cada um é enquanto autopluralidade.
Outra especificidade que não poderia deixar de destacar em Imago são as referências a Manuel Bandeira, com menções expressas, tais como: “ou idear Pasárgada, ir embora / em travesseiro de estrelas”, no poema “Caixa-preta”; “O céu plúmbeo de Bandeira nunca assistiu a tanto desenredo”, em “Ex-satélite”; ou em supostas referências indiretas, conforme leio no poema “Pela décima vez”, cuja estrutura faz lembrar o clássico “Vou-me embora pra Pasárgada”: “vou deixar esta cidade sem sofrimento, / seu substrato poético, seu não-acaso genético, / meu apartamento”. Tal fato reforça o domínio plural na construção de uma voz que se multiplica ao se dizer. O diálogo com referências externas resulta na metabolização dessa variedade, mediante um arranjo em que os poemas se movimentam num tipo de rizoma escutatório, imagético.
Enfim, creio que em Imago Fernanda Spinelli fez alguns jogos entre palavras ao brincar – de forma muito séria! – com as rimas no interior dos poemas, o que faz sentido se compreendermos o caráter enfático em ambiência onírica, mediante o carrossel de imagens apresentado ao longo dos poemas. Essa característica cria um tipo de disrupção compreensiva ao evitar que nossa leitura embarque na linha reta das percepções. Seria algo como se os leitores e as leitoras recebessem convites para abrir mão da lógica imediata, a fim de darem as mãos à leitura para a construção de uma grande roda semântica nessa brincadeira hermenêutica.
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de na escuta o gatilho (Rizoma Projetos Editoriais, 2023), A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Contempo, Poesia Avulsa, Mallarmargens, InComunidade, Quatetê, Arara, 7Faces e na própria Vício Velho.
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Referências
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Vol. I. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 140.
CASTRO, Manuel Antônio de. “Obra de arte e imagem-questão”. In: ______. Leitura: questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2015.
______. Dicionário de Poética e Pensamento. Internet. Disponível aqui. Acesso em: 18/12/23
LORENZ, Günter W. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Eduardo F. (org.). Guimarães Rosa. 2ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
SPINELLI, Fernanda. Imago. Barueri: Editora Nauta, 2023.