Coluna | Alguma coisa em mim que eu não entendo
No duodécimo dia, vieram as baratas. Depois de ter faxinado a casa, almoçado, assistido alguns vídeos no youtube e revisado alguns planos de aula que eu desejava atualizar desde antes da pandemia, adiando sempre, eu estava deitado na cama, acessando pelo celular, alternativamente, o twitter, o instagram, o whatsapp, conferindo notícias, memes, frases motivacionais, campanhas de combate ao vírus, as últimas insanidades da família presidencial, fotos de amigos e desconhecidos, mensagens da família et cetera et cetera. Um dia normal, dentro do que se havia tornado um dia normal.
Ela entrou voando pela porta e se agarrou à cortina branca. Marrom, gorda, de antenas longas. Uma barata no vigésimo andar. Não era a primeira vez, mas era raridade. Antes de me levantar para matá-la, resolvi filmar e compartilhar. Por tédio, pelo inusitado. Mirei a câmera do celular, apertei o botão “sem as mãos” e narrei, enquanto dava zoom deslizando os dedos pela tela: Pronto, era só o que faltava, uma barata querendo me fazer companhia na quarentena. Pausa. Que bonita, ela, acrescentei, entre a sinceridade e o sarcasmo. De certa forma, sim, ela era bonita, por que não? Outra pausa. Bom, vou lá matar, finalizei. Publiquei o pequeno vídeo, levantei-me, peguei na sala o pé direito do chinelo, que encaixa melhor na minha mão direita, e voltei ao quarto.
Dei-lhe um safanão rápido, e caiu de pernas para o ar no chão de taco. Viva ainda, mexendo um pouco as asas e as antenas. Olhei-a de perto. Não, não pensei em comê-la, como G.H.. Apenas, talvez, a morte andasse a adquirir novos significados esses dias. Testemunhei enquanto os tremores de membros cessavam. Suspirei. Então peguei novamente o celular, tirei outra foto e publiquei, com a legenda minha solidariedade a quem está isolade na quarentena e não mata barata sozinhe. força aê e uma carinha rindo e chorando ao mesmo tempo.
Fui à cozinha pegar uma sacola plástica. Recolhi o corpo com a mão protegida pelo plástico, parecido a quem recolhe as fezes de um cão na calçada, e a comparação me remeteu ao vazio das ruas, três dias antes, quando saí pela primeira vez desde o início do isolamento para ir ao mercado. Na pracinha do bairro, um gato saltou do meio fio na direção de quatro ou cinco pombos, com as garras estendidas ao ar. Caiu de patas vazias, coitado. Há quanto tempo será que ninguém lhe vinha dar o que comer?
Suspirei novamente, pensando que meu rosto naquele momento deveria ter uma expressão desolada semelhante à do gato. Fui até a janela e abri a cortina e as folhas de vidro. Espiei a noite silenciosa. Ao longe, embora eu não pudesse vê-lo, sabia que o Cristo abençoava o lado de lá da cidade, de costas pra cá. Peguei o celular de novo. No insta, um amigo havia respondido meus posts dizendo que de tarde a casa fora invadida por uma dezena delas. Comoção na família, a mãe gritando, um vizinho quebrando a distância para acudir aos gritos, juntando-se à operação de guerra para exterminar as invasoras. Pensei nos ratos surgindo das profundezas de Oran para morrerem ao sol no livro de Camus, e respondi, entre sarcástico e sombrio: prenúncios da peste.
Mal tinha enviado a resposta, e outra mensagem chegou. Uma prima, contando que na Vila Militar uma horda de cascudas voadoras causara verdadeiro pânico entre as mulheres, obrigando os oficiais de folga a se desdobrarem de casa em casa matando dezenas de insetos. Franzi o cenho, menos sarcástico. No meu cérebro começava a se formar um intrincado jogo de ligue-os-pontos: as baratas, o Cristo, A Peste de Camus, a Bíblia e suas dez pragas sobre o Egito, que segundo cientistas podem ter ocorrido de fato, causadas pela combinação de uma grande seca do Nilo e uma enorme erupção do vulcão Thera (eu lera numa revista), o gato faminto, os macacos invadindo cidades tailandesas no início da pandemia na Ásia, também famintos por não haver mais turistas para alimentá-los e…. E o que mais? Os pontos formando um desenho inacabado que eu era incapaz de decifrar. O que mais nos aguardava?
Busquei na internet notícias sobre outras infestações naquele dia. Nada. Recorri ao twitter, as pessoas postam sobre tudo no twitter. Nada tampouco. Por via das dúvidas, busquei no armário do banheiro a bisnaga de gel mata-baratas, verifiquei a validade e reapliquei por todo o apartamento, em doses três vezes maiores que a recomendada.
Antes de dormir, pensei na mãe, que odiava baratas, lia a Bíblia com fervor e não gostava de ficar dentro de casa. Se estivesse viva, teria sessenta e sete anos. Hipertensa, diabética. Altíssimo risco. Pela primeira vez desde o acidente, não amaldiçoei Deus ao lembrar dela.
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Thássio Ferreira, escritor radicado no Rio de Janeiro, é autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016) e Itinerários (Ed. UFPR, 2018 — obra vencedora do i Concurso Literário da editoria universitária). Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Germina, Revista Ponto (SESI-SP), aqui na Vício Velho, InComunidade (Portugal), e outras. Mantém página no Facebook e o Instagram
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