Coluna | Alguma coisa em mim que eu não entendo
Ele era forte, saudável. Mas era melhor não arriscar. Havia casos. Jovens, atletas, pessoas sem nenhuma condição pré-existente que aumentasse o risco de morte, e que ainda assim…. Sem falar que o quadro do sistema de saúde não havia melhorado muito desde o colapso. Uma eventual internação já lhe causava pânico, mesmo que sobrevivesse. Mas depois de tantas semanas, ansiava por alguma forma de minimizar o isolamento extremo em que se colocara, e que o dinheiro lhe permitia.
Aproveitou seus muitos amigos médicos: conversou com um infectologista. Sim, era razoável acordar antes de clarear o dia para correr ao ar livre, quando não houvesse quase ninguém na rua. Descendo e subindo pelas escadas, saindo e voltando pelo portão automático da garagem. Sem encostar em nada. Longe de todos. O vírus, segundo estudos, poderia permanecer em suspensão no ar por até três horas, expelido numa tosse, num espirro. Quem estaria andando por aí pela madrugada?
Decidiu então se levantar às cinco horas, para correr em jejum, fortalecer o sistema respiratório e retornar com o sol despontando. Novos hábitos, pensou. Vestiu uma bermuda abaixo dos joelhos e camisa de mangas compridas de tecido leve, daquele que facilita a evaporação do suor e diminuem a sensação de calor do corpo. Meias de cano alto. Os tênis já estavam no corredor do prédio: usava-os nos casos de absoluta necessidade de sair e os deixava ali, em vez de trazê-los para dentro.
Correu por cerca de meia hora e retornou, ofegante, satisfeito. Subiu as escadas. Defronte à porta, meteu a mão no bolso para pegar a chave. Que não estava lá. Revirou o bolso: furado. A chave caíra em algum ponto do caminho, sem que ele percebesse. Teve um calafrio momentâneo, e logo o instinto desabalado: desceu as escadas novamente, o mais rápido que conseguiu, e voltou à rua.
Recapitulou mentalmente o trajeto da corrida, aferrando-se com desespero à esperança de conseguir encontrar o pequeno chaveiro prateado antes que alguém o chutasse para um bueiro, ou um carro lhe passasse por cima e o pneu, resvalando, o atirasse em direção imprevisível, ou qualquer outro movimento dos seres e das coisas lhe impedisse de voltar para casa, lavar as mãos e o rosto, banhar-se, proteger-se.
Caminhou teso, como sobre invisível fio de faca: entre a pressa de encontrar logo a maldita chave e retornar, antes que os outros, os outros, os possíveis contaminados, acordassem, a passar ao seu lado, respirando, propagando terror invisível; e a inescapável lentidão necessária para esquadrinhar meticulosamente todo o chão por onde lembrava ter passado. Suava, talvez ainda mais que durante o exercício. Suor frio, boca seca, pernas que já tremiam de leve, e a tensão de vigiar as próprias mãos para impedir-lhes os gestos tão automáticos de preocupação, como passar os dedos pelos cabelos ou as palmas sobre os olhos, sobre a boca. Não!
Inútil. Desde a calçada em frente ao prédio até o ponto mais longe onde tinha ido durante a corrida, nem sinal da chave. O sol já começava a romper sobre o mar. Ergueu os olhos do chão em desespero, mirando ao redor em busca de alguma pista, um sinal de salvação. No gramado onde começava o molhe de pedras, um homem de roupas surradas remexia objetos espalhados ao lado de um grande saco de ráfia encardido. Aproximou-se um pouco, a medo, e percebeu mais nitidamente sua aparência suja, a barba amarelada, e as inutilidades, pedaços de coisas quebradas, lixos, na verdade, às quais o homem se dedicava.
— Ei!
O homem se virou.
— Você viu uma chave aqui no chão?
O homem levou a mão esquerda em concha atrás da orelha, inclinando um pouco a cabeça de cabelos desgrenhados, em diagonal. Não tinha escutado. Ou está se fazendo de besta, resmungou a si mesmo, irritado, os nervos retorcendo-se. Repetiu a pergunta, mais alto. De novo a mão em concha, acompanhada agora de um meneio de cabeça, indicando que o homem ainda não entendia.
Ele quer que eu chegue mais perto. Por quê? Pode querer me assaltar. Ou pior, pode estar infectado. Hesitou, pés chumbados no asfalto. Mas o desespero era maior. Caminhou trêmulo até o outro e perguntou-lhe outra vez se tinha visto uma chave no chão, com voz metálica, tensa. O homem respondeu sem palavras, meneando novamente a cabeça, com o lábio inferior projetado para frente, ao mesmo tempo em que olhava ao redor, numa tentativa de ajudá-lo a encontrar o que buscava.
Mas por que ele não responde? Por que não fala? E sua irritação foi se metamorfoseando em raiva. Ele viu a chave. Só pode ter visto. Aposto que pegou do chão quando me percebeu procurando alguma coisa. Vai me seguir até em casa, talvez. Ou… não sei. Deu mais um passo à frente, a raiva cegando-lhe a lógica: aproximava-se e queria sim que o outro falasse! Falasse, expelindo ar e gotículas inevitáveis de desconhecida saliva! Queria agora confrontar aquele homem e fazê-lo admitir que estava com a chave que lhe pertencia, e que a devolvesse!
— Viu sim! Eu sei que você encontrou a minha chave!
O outro olhou-o sem malícia e levantou as sobrancelhas, repuxando para baixo os cantos da boca e encolhendo um pouco os ombros, como quem pedisse desculpas.
Tá de sacanagem comigo, esse filho da puta! Cerrou o punho e desferiu o soco. O homem caiu na grama e levantou os braços na frente do rosto, as mãos abertas tentando defender o rosto. Ainda sem palavras. Ele, cego. Cão raivoso. Alcançou o que parecia um pedaço de cabo de vassoura, dentre os cacarecos espalhados em torno do homem caído, e golpeou-lhe uma, duas, três, quatro vezes. Na cabeça. O outro, então, inerte, olhos fechados. Largou o pedaço de pau e pôs-se a procurar a chave em meio ao lixo. Abriu e despejou no chão o saco de ráfia. Nada. Com olhos injetados e nojo, revirou as roupas do homem. Também não.
Desabou sentado sobre a grama, sem conseguir retomar qualquer raciocínio. O sol já descolara suas bordas da linha do horizonte.
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A primeira parte dessa trilogia pode ser lida aqui: Baratas (ou prenúncios da peste)
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Thássio Ferreira, escritor radicado no Rio de Janeiro, é autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016) e Itinerários (Ed. UFPR, 2018 — obra vencedora do i Concurso Literário da editoria universitária). Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Germina, Revista Ponto (SESI-SP), aqui na Vício Velho, InComunidade (Portugal), e outras. Mantém página no Facebook e o Instagram
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