CORPOCAFEIDADE FICCIONAL DE GABRIELE ROSA – FÁBIO PESSANHA

coluna | palavra : alucinógeno


em dias medidos em xícaras de café, de gabriele rosa, o corpo por onde a poesia se mostra funde prosa e poema como o filtro que reúne pó de café e água fervendo. existe nesse ato uma corporeidade, uma corpocafeidade, tendo em vista que pela simbologia presente no referido livro chegamos ao estímulo da palavra que reage ante o isolamento pandêmico. gabriele redige como quem sente na pele o que escreve e desse ato institui a força-metafórico-motriz mensurada pelas xícaras de café. no entanto não se trata da defesa de uma teoria puramente sensorial, e sim do acolhimento das primeiras percepções do poético durante a atenção, o transe, a transa, por onde um texto nasce. o elemento corpóreo habita a tensão entre o sentir e o dizer e faz jus à ficção enquanto instauração mais enérgica da realidade ou à reinvenção do real pelo corpo da palavra, desde a apresentação paradoxalmente inalcançável da linguagem. pelas imagens de gabriele, figura-se uma possível corporeidade pela qual gesto e escrita se imbricam.

aprendi bordado quando
pequena observando
minha vó tecer as
palavras que engolia
sozinha solar saudade
era comum esbarrar com a voz dela
nos panos de prato

a voz abre um colapso na percepção do tempo. tal como fissuras, aguarda-se um instante para que o espaço entre tecido e linha se fundam pela ambiguidade das costuras. talvez não se tenha autonomia para tratar de esboços, ainda que a linhagem das falas se dê no futuro das memórias. mas como o felino que procura uma tábua para arranhar suas garras, trago entre as unhas o material vivo dos fragmentos e nos dedos o preparo para agulhas. observando / minha vó tecer as / palavras que engolia, afiava os ouvidos para a escuta. organizava a rotina dos afazeres a fim de conceber fascínio pela projeção de ideias. a gente se misturava bonito. era comum esbarrar com a voz dela / nos panos de prato. formávamos uma coletividade na diferença de forças, com sintonia para conquistar aquilo que se chamava infusão.

sempre fui boa com jogos
– ela é café com leite
eles disseram

eles quiseram ser brandos. porém eram tal como os bandos que corriam em torno dos pés. competia olho a olho e não deixava por menos. mesmo assim, o peso com que media os arremessos – sem me importar se longos ou escassos – firmava a nomenclatura da recusa: ela é café com leite. o que porventura não soubessem é que a proporção do café era imensamente maior. transpassava a agitação por dentro das vontades de ascender como a fumaça da xícara e ganhar percepções outras. havia ginga. meu jogo de cintura sempre foi o preferido dos bambolês. e me perguntava se a ternura da recusa era coisa da minha cabeça, que me ensinaram a naturalizar, ou se ninguém percebia que o que diziam era uma invasão. sempre fui boa com jogos, e sabia as cartas na manga. o jogo era quase rua. em minha habitação (pr’além de cimento, areia e tijolos), as regras eram uma autoapropriação. nada de atropelos. embora fossem muitos.

o trabalho se mudou pra minha casa
ele que se adapte a
minha nudez instantânea

durante a pandemia, a rua se tornou proibida. o toque, perigoso. era o que dava: as relações, a internet. o trabalho remoto. o controle remoto. a televisão não parava de falar. o computador, o intermédio para meu novo amor. a metamorfose da tela em proximidade (um fingimento necessário). o hibridismo entre um corpo e outro: centauros sátiros sereias zoom meet lives livres (?) lives. o horário das 18h era insuportável. mas o corpo ainda me era. era o que tinha. a nudez, uma libertação; alguma maneira de se apartar de algo enquanto trazia o corpo para o corpo. não dava para chegar em casa porque dela não se saía. o despir-se acontecia atrasado. os pelos eriçados. a nudez repentina ao gravar na cronologia o que lhe torna impossível suceder. instantâneo não tem intervalo. é agora.

beijou de língua minha poética bem posicionada.

não quis saber da distância entre a xícara e a boca. algumas palavras deslocadas para o equívoco permaneciam atônitas, atadas ao solavanco da linguagem em conferir a flexibilidade necessária para o posicionamento das frases. o transe fundava a audiência das falas à procura de excitação. mais que um corpo e outro no desejo das ambiguações, havia o inalcançável sentido do movimento. o comando dado para coabitar a transitividade dos corpos cá dentro da fome. excitar como pôr para fora o próprio ato de sair. um exercício de autossalivação coletiva. noite adentro, as pernas, os braços, a pele, a sede.

amanheci com o mar cantando nos meus pulmões.

um afogamento inverso, quando a asfixia se anula em função da intensidade das águas. a maré inunda o dizer, devassa as ligações sintáticas devido à interferência das chuvas. a água entra onde não havia caminho. ela se instala. enuncia o nome antes de qualquer vocativo. os pulmões são o coração da voz e o mar canta em resposta às tardes de chuva. o ruído do tempo se confunde com a escuta da casa, com a escrita da fala encenada enquanto o bolo assa e traz na sua forma o equilíbrio. essas leis que a gente sabe no corpo regem a anomalia das vontades. nunca estamos, ou quase nunca, no lugar combinado. a gente se perde mesmo quando a proibição se pronuncia alto nos desejos, e o querer nos é. ficam as marcas das ondas na areia enquanto brevidade, até que venha a próxima e redesenhe o caminho marcado. estamos nessa transitividade de enchentes, na sinfonia oceânica dos amanhecimentos. o alvorecer atua na harmonia do meu fôlego. voltamos à linguagem, se é que em algum momento dela saímos.

dor de palavra não cessa, enraíza

e a gente pensa logo em terra, o lugar que recebe as raízes; também de onde brota a tentativa de trazer o céu na ponta dos dedos. pupilas suspendem a luz até o instante em que os pulmões fagulham paredes ao encerrarem o silêncio decisivo de cada palavra. de novo, a percepção de uma singular corporeidade. e mais: talvez se chame linguagem o interstício entre dizer uma palavra e incorporá-la. uma simbiose, o metabolismo verbal no gesto que articula algum grau de padecimento durante a fala. 

a dança entre línguas amoladas diz tanto do encanto pela imagem quanto a flutuação alquímica no quarto de gabriele. não há cortes que reparem a fratura pela conjugação dos gestos na dissidência das elocuções. pulsam as palavras durante a nevralgia que ataca o corpo enquanto o poema é dito, enquanto a voz não cessa de doer e se enraíza ainda mais dentro do que se poderia chamar de silêncio originário. a linguagem articula a simultaneidade entre a profundidade do que chega ao cerne e a ambivalência do que se dissolve na própria aparição. ir à raiz como se procurasse o elemento primeiro, mas isso talvez seja a maior das ilusões – a ideia de centro, cerne, concentração primeva determinada. a radicalização estaria, pelo risco de se fazer realidade, no desdobramento do que é assunção e desapropriação contínuas, no movimento de se interpretar uma poética corporal: pancada.

p.s. Gabriele Rosa em seu dias medidos em xícaras de café (Urutau, 2023) parece querer surpreender o instante ao escrever de forma repentina. com ela a gente percebe que os repentes da poesia não se limitam à lógica da sucessão frasal, e se atracam aos montes com as imagens. por aqui, ao se trazer alguns trechos de poemas, algumas frases, imagens de seu livro, é possível mesmo que brevemente ter ideia da movimentação corporal provocada em sua escrita. e é isso, movimento corporal, um exercício de corporeidade, corpocafeidade, em que um tipo de dramaturgia comparece. ou seja, embora seu livro não seja um texto de teatro, muito se teatraliza pela reorganização de uns lugares frasais, do desafio sinestésico das percepções; ou ainda pela cisão ou choque imagético, dada a maneira de estruturação dos poemas, frases, construções semânticas. leia bem quente.

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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.