Coluna | Alguma coisa em mim que eu não entendo
Um escritor escreve. Uma crítica critica. Ele rebate. Ela refuta. Instaura-se a polêmica.
Ainda não li Salvar o Fogo, novo romance de Itamar Vieira Jr., mas não é do livro exatamente que vou tratar. Lígia G. Diniz, professora de Teoria da Literatura na UFMG, fez uma resenha sobre ele na revista Quatro Cinco Um. Pouco depois, em sua coluna na Folha, Itamar publicou um texto tendo como mote o racismo escancarado que Vini Jr. enfrenta na Espanha. Pelas tantas, menciona indiretamente a resenha, centrado em dois argumentos principais: de racismo na escolha de uma pessoa branca para resenhar uma obra atravessada pela raça; e de que o texto em si tinha sua dose racista. A resenhista e outras vozes se indignaram, dizendo que as afirmações de Itamar foram levianas, absurdas, e representam a morte do debate público e da ficção. Treta, caos e gritaria em caracteres.
Refletir sobre se a escolha da crítica e seu texto foram racistas parece um ponto crucial do debate. No entanto, justamente essa discussão foi recusada pelas manifestações (que li) contra a coluna de Itamar. Ele aponta os porquês de enxergar assim, mas a reação não refuta os argumentos, não expõe outras visões, adotando uma postura de se você me acusar de racismo, o debate acabou. Ora, se há uma rejeição em analisar a percepção colocada (e desmontá-la, se for o caso), quem está interditando o debate?
Não acho que uma acusação de qualquer espécie de discriminação deva ser acatada de pronto, ou em sua totalidade. Mas admitir que somos capazes de violências é necessário para aprendermos a lidar com seus riscos e consequências. A resposta que não se debruça sobre o raciocínio das alegações está negando a possibilidade de ter cometido uma violência. Quem não admite ser chamado de racista em nenhuma hipótese está afirmando que não há chance (nunca) de ter praticado um ato passível de ser lido dessa forma. Com tanta informação circulante sobre opressões estruturais, que se entranham e se reproduzem mesmo sem intenção consciente, a posição de nos colocarmos acima do risco de cometer algum tipo de racismo é… racista.
A dinâmica é curiosíssima, porque independe de a resenha ter tido ou não esse caráter, e cria o que nega, constituindo em si mesma um ato/pensamento de superioridade no âmbito das relações raciais. É um jeito equivocado de manejar o juízo de inaceitável aplicado a atitudes discriminatórias. Se o racismo não pode ser tolerado, não posso tolerar ser apontado como tal. Em nosso caso específico, ainda pratica o que condena: interromper a argumentação pública em vez de discutir o conteúdo que cada pessoa traz a ela.
Voltemos ao ponto de partida: se a visão do autor acerca da escolha da resenhista e do texto produzido pode (e deve) ser discutida, ela se sustenta? Analisar a ocorrência ou não de outrofobia (racismo, LGBTfobia, misoginia, capacitimos, etc.) deve se fundar nos aspectos concretos envolvidos. Aqui, parece justo questionar a indicação de alguém não relacionado a elementos incontornáveis que o livro evoca para resenhá-lo, quando havia a chance de indicar outra pessoa. Isto não significa vedar a ninguém a prerrogativa de escrever sobre qualquer literatura, mas diante da realidade brasileira de predominância de acadêmicos e críticos culturais brancos e sudestinos, e diante de uma obra que tematiza relações raciais e socioeconômicas, há que nos atentarmos para os efeitos que a escolha desta ou daquela pessoa opera efetivamente no cenário obra-crítica-público.
Existem potenciais argumentos contrários. Por exemplo, de que talvez a questão racial não seja tão fundamental ao romance, ou de que optar por uma mulher para resenhar um livro protagonizado por mulheres já garantiria um grau suficiente de pertencimento a seu universo (inclusive por não existir, no fim das impossíveis contas, parâmetros objetivos para essa decisão). Até mesmo de que a crítica literária, e quem se escolhe para fazê-la, não deve levar em consideração nada disso. Mas os argumentos não foram articulados (de novo: preferindo-se encerrar a questão sem discutir seu conteúdo), e ainda que implícitos, não creio serem os mais adequados.
Parte do que torna o racismo estrutural é justamente colocar a branquitude como referencial neutro, colando a outros possíveis referenciais a pecha de identitaristas. Se não importa que seja uma pessoa branca ou negra a resenhar um livro, por que demandar uma crítica negra de obras negras seria empobrecer o caldo cultural? E por que obras brancas e urbanas serem majoritariamente analisadas por gente branca dos grandes centros é tido como algo natural? Não é. Por outro lado, se tanto faz, por que não visibilizar críticas negras, e assim evitar o argumento de Itamar, sem nenhum prejuízo à qualidade da interpretação literária? A decisão de repetir um padrão referencial pode não ser maliciosa, intencionalmente discriminatória, mas reproduz uma estrutura que não é neutra.
E quanto à resenha? Também é problemática. Antes de passar a ela, sublinho duas premissas relevantes: primeiro, minhas análises de literatura e de textos sobre literatura vêm de um interesse leigo, enriquecido aleatoriamente (oficinas, leituras teóricas, etc.). Ou seja, reconheço que posso não ter o ferramental mais completo, mas afirmo minha legitimidade em também participar do debate. No mesmo sentido vão minhas reflexões sobre questões raciais. Esse é meu lugar de fala, termo que não significa proibição de fala, mas contextualização. Falando nisso, sou branco. Segundo, minha interpretação parte de um recorte, há outros possíveis, assim como outras conclusões possíveis além das minhas — o teor do que interpreto também está na roda para escrutínio.
O texto de Lígia é bem escrito e não me parece agressivo ao autor. Não há racismo explícito, e provavelmente nem desejado. Porém, ai porém…
Logo no começo, a primeira estranheza: afirma-se que “toda leitura [de Salvar o Fogo] partirá da dúvida sobre se ele será capaz de reproduzir o sucesso [de Torto Arado, sobre o qual já caraminholei] ou se terá caído na tentação de repetir uma fórmula”. Entendo a hipérbole, já que o Arado foi um fenômeno literário como não se via há muito tempo. Mas estabelecer categoricamente que toda leitura do novo romance se funda na dúvida de ser o autor capaz ou não de algo, que afinal ele já fez, é no mínimo uma arrogância. Prove que não foi sorte de principiante. Ademais, vale atentar para os critérios postos: o positivo, sucesso, não fala de qualidade literária (que o Arado, segundo muita gente, possui em larga medida), mas o negativo, repetir fórmula, aponta para um prejulgamento de que reiterar procedimentos literários, num segundo romance declaradamente articulado ao anterior, seria demeritório. Quantos autores brancos não temos na literatura brasileira que “repetiram fórmulas” por obras a fio e a abordagem crítica se inclinou a ver isso como marca de estilo? Nas frases seguintes, o texto atenua a derrapada, inclusive avaliando como bem vindas certas retomadas do Fogo, mas uma vez estabelecido o quadro a partir do qual se opera a crítica, as atenuações parecem vir como concessão.
Ao longo da resenha, adjetivos são usados sem a necessária elaboração: fatalista, pouco criativo, raso, reducionista, pouco convincente. Pouco criativo/convincente por quê? Valorar sem explicar também é uma forma de arrogância, e um argumento de autoridade que se busca pactuar com quem lê. Se digo que é assim, vocês que se esforcem para chegar à mesma conclusão, ou provem onde erro; meu acerto é dado, meu desacerto deve ser refutado.
Não acho que todas as críticas de Lígia sejam descabidas. Algumas me parecem bem embasadas (consideradas em si mesmas, já que não li o romance), como a de maniqueísmo da obra (que Itamar contesta expressamente). Também não acho que tenha havido intenção de subalternizar o romancista. Este, em sua coluna, é ambíguo: dá margem a entendermos que, a seu ver, o processo de subalternização foi intencional, mas o ponto-chave é que mesmo sem intencionalidade, ele ocorre, entranhado nas estruturas.
Detalhes significativos, como o recurso a Toni Morrison e bell hooks, apontam a preocupação da autora em localizar suas opiniões no campo antirracista. A armadilha está em não reconhecer(mos) mecanismos discriminatórios operando independentemente da vontade e dos elementos postos que se opõem a estes mecanismos. Ter(mos) gestos e preocupações antirracistas não garante imunidade a gestos outros, que se manifestam nas lacunas do que enxergamos e reiteram modos relacionais arraigados socialmente. Somos contradição, e é totalmente concebível um texto trazer ao mesmo tempo características racistas e antirracistas, por mais esquisito que possa parecer.
Pego aqui outro detalhe da resenha para uma digressão que pode ser útil. Lígia usa o termo “escravizados”, que transmite através da própria linguagem a violência perpetrada contra alguém, em vez de naturalizar essa violência usando “escravo”, palavra que induz um certo entendimento de que a condição de escravidão seria inerente à pessoa. Esta é uma preocupação antirracista correta e necessária. No Itaú Cultural de São Paulo, dividem espaço hoje uma ocupação celebratória da cantora e compositora de carimbó Dona Onete e uma grande exposição de gravuras do Brasil colônia/império. Nas legendas da exposição, usa-se sempre “escravo”. A contextualização da escravização massiva de pessoas por sua cor de pele é parca e mal feita. A ocupação sobre Dona Onete demonstra, por um lado, um saudável interesse do centro cultural em visibilizar e valorizar formas de arte não-elitistas e apoiar a diversidade cultural. Mas ao mesmo tempo, a mancada que reitera um simbolismo violento está lá, dois andares acima.
Volto da digressão aproveitando o gancho simbólico: parte da indignação de Lígia à coluna de Itamar vem de ele colocar no mesmo espectro o racismo explícito contra Vini Jr. e a indicação que ela faz de falhas do romance. Mas não são os (válidos) apontamentos de fraqueza literária que ele inclui no espectro de racismo, e sim outras engrenagens, que podem não ser escancaradas, mas nem por isso são menos questionáveis. Uma e outro apontam problemas no texto alheio, que não necessariamente invalidam suas qualidades.
Concordo que Itamar não faz ressalvas e diferenciações que seriam cabíveis. Outras posturas dele também podem ser questionáveis, por outros ângulos. O que não invalida as entrelinhas que ele desvela. Minha tentativa é justamente somar questionamentos, não subtrair, e tentar extrair, do troca-troca de textos, consequências e interpretações que talvez não sejam tão facilmente percebidas à primeira vista. Se a coluna dele generaliza quando não devia, me parece perfeitamente legítimo relacionar o racismo que ele reconhece contra si (no âmbito e proporções da esfera em que transita) ao que reconhecemos contra Vini Jr..
Quando relaciona o Fogo a um ensaio do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, novamente Lígia resvala em certa prepotência difícil de não trazer para o campo coletivo, de uma intelectualidade (branca) que firma a régua da exigência de méritos em patamares cujo referencial é a própria experiência, e não a da pluralidade de vivências. “Para quem conhece o texto [de Castro], soa forçado o paralelo… [feito por Itamar]”. Ora, mas então para se apreciar um romance precisamos ler um ensaio antropológico? A importância maior não seria como o paralelo soa para a grande maioria que não conhece o ensaio?
Adiante, em novo exemplo desse sarrafo mais elevado dirigido a pessoas de fora de um grupo com o qual nos identificamos, a autora questiona porque Itamar não investe “em procedimentos formais menos familiares ao leitor de modo a redobrar a sensação de estarmos diante de algo a que até então não havíamos prestado atenção [a realidade de uma população à margem da modernidade ocidental]”. É função da crítica provocar quem escreve a ir além, mas o tom e certa insistência parecem ultrapassar a linha do estímulo salutar, resvalando numa demanda desproporcional. Não basta a obra manejar instrumentos do cânone para retratar realidades que precisam ser mais retratadas, exige-se que também seja radicalmente inovadora.
Vale ressaltar que talvez nenhum dos pontos que abordo seriam suficientes, de forma isolada, para fundamentar a reação de Itamar. Mas vistos em mosaico, fica complicado alegar que não há nenhuma forma de violência simbólica no desenrolar de atitudes e palavras. No último parágrafo da resenha, Lígia propõe que as razões para “esse tipo de literatura” obter tanto espaço institucional “apontam para o caminho do autoflagelo fácil, e nada produtivo, de uma elite ilustrada que, para expurgar a culpa por seus privilégios, celebra narrativas maniqueístas”.
Fácil? Noves fora o uso de uma expressão classicamente desdenhosa (“esse tipo de literatura”), a identificação de um autoflagelo fácil da elite ilustrada revela-se irônica e sintomática. No texto, trechos duros resistem a olhar de maneira menos socialmente autocentrada uma literatura que propõe certa mudança de perspectivas. E na reação ao apontamento dessa resistência, uma recusa absoluta de enxergar responsabilidade sobre mecanismos com impactos reais sobre pessoas reais.
O autoflagelo só é fácil quando incidente sobre nossos antepassados, ou sobre “nós” abstratamente coletivizados. O racismo estrutural nós reconhecemos, mas apenas nas estruturas exteriores a nós e nossos atitudes, estruturas das quais não participamos. Quando se apontam equívocos individuais, cuja responsabilidade nos cabe, torna-se muito difícil exercer verdadeiramente um esforço de compreensão, responsabilização, reparação.
É difícil mesmo. Mas necessário. Mecanismos de violência e opressão estão entranhados em nossas dinâmicas sociais e comportamentos pessoais. Minha irmã já me fez enxergar machismos que cometi e não compreendia. Quando aponto falas homofóbicas de amigos heterossexuais que genuinamente me amam e não são homofóbicos (num sentido generalizado), dói em mim e também neles. Todes nós vamos errar ao longo da vida. Admitir a possibilidade do erro e nos abrirmos a discutir sua ocorrência (ou não), quando alguém levanta a lebre, me parece fundamental para nos tornarmos pessoas e sociedades melhores.
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1 Pego o termo emprestado de Alex Castro.
2 Sobre meu recorte, vale informar: me deparei com a polêmica quando alguém que sigo no twitter respostou uma reação de Lígia à coluna de Itamar. Fui então buscar a coluna e a resenha. Aparentemente houve outras manifestações de parte a parte, mas não consegui encontrá-las.
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Thássio Ferreira é escritor, autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016), Itinerários (Ed. UFPR, 2018), agora (depois) _(Autografia, 2019) e Nunca estivemos no Kansas (Patuá, 2022). Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Germina, Revista Ponto (SESI-SP), aqui na Vício Velho, InComunidade (Portugal), e outras. Seu conto _Tetris foi o vencedor do Prêmio Off Flip 2019, e seu livro inédito Cartografias, finalista do Prêmio Sesc 2017. Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Mantém página no Facebook e o Instagram