coluna | palavra : alucinógeno
aportar num poema como um avião que descobre o pouso na hora em que o chão se torna o limite entre colapso e segurança. a destruição que um verso carrega é da ordem da centelha, incandescente, quase nuvem no contato entre superfícies. o que nos leva a pensar que a catástrofe está no âmbito do ínfimo. no instante fundamental em que um mundo pode recomeçar ou quando de vez se perde o ritmo acontece o desvio para adversidades. estas, conforme já dito, podem se iniciar por uma fagulha. como a dedicatória do livro poemas para pessoas que cruzam oceanos e não viajam, de melina galete. dedicatória que também é um poema, que também é um modo de prometer calamidades.
Para a Maria Clara,
que já levou
recado para casa
por perder tempo
escrevendo poemas
em sala de aula.
dá vontade de desdobrar a ideia de perda pela poesia. da entrega ao tempo de um poema, da sua exigência. porque o poema exige. embora não seja de ordem causal, sua demanda acontece num paradoxo, quem sabe, incomensurável. trocando em miúdos, não há causa e efeito num poema ao se partir da ideia de sua não serventia. afinal, o poema não serve para nada. esse fato na perspectiva causalista significa uma grande perda de tempo no momento em que alguém é flagrado se dedicando a ele.
dá nisso. a mãe ou o pai ou seja lá quem tiver a responsabilidade do cuidado na educação recebe o recado no caderno quando a filha ou o filho se investe na procura de si ou no rascunho de algumas imagens para, talvez ainda sem intenções conscientes, se permitir experimentar o ritmo das proposições. uma coisa é certa, uma afronta até: a gente come o poema enquanto o escreve. uma devoração agramatical. corporal. um acontecimento. uma irresponsabilidade.
há uma urgência nesse corpo que ainda há. também o poema, cuja intuição se renomeia num bilhete para casa. no caderno nem sempre há um acordo. mas se escreve. e se escreve. e se escreve. há o risco. sobretudo, há necessidade. um jeito de se prolongar o próprio corpo em frases, em pessoas que se tornam oceanos nem sempre atravessáveis.
dedicatória diz uma abertura. intensifica o sentido de mote quanto mais potentes forem os desencadeamentos. expõe dando pista para a iminência própria da vertigem. aqui, pela degustação irônica de quem escreve de soslaio, a andança se dá por ser de muitas idas / e nenhuma volta. quem sabe seja um itinerário. ou talvez os poemas apontem para alguma tentativa de se estabelecer passagens para e desde maria clara. a genealogia galete.
para todas as pessoas que perdem tempo lendo poemas, para todas as pessoas que se encontram na fronteira entre o ir e o deixar de fazer, para todas as pessoas que são iminência e margem, maria clara levou recado para casa. ela reconstituiu o pacto pela desobediência que um poema provoca. entregar-se à leitura, rascunhar-se na escrita, tamanha perda de tempo. perdei-vos.
maria clara fundou pontes para se compreender que esses poemas podem ser uma promessa a pessoas que cruzam poesia sem oceanos. na aprendizagem há constante renúncia, uma ocupação entre voz e autoria pela qual se aponta uma destinação. maria maria. o presente assumido enquanto houver sala de aula para gestação de versos, linhas; para alguma imaginação que traga a palavra ao seu limite.
Maria tem futuro
todavia
não se importa
com o que vem
com o que foi
apenas vive
como deve ser
a assunção das palavras numa arquitetura de imagem figura a coragem de se voltar para casa. o retorno talvez não seja tão simples. pode indicar o regresso a quem de fato nunca partiu. trata-se de uma autoinvasão assumir que mais importante é um verso quando se tem pela frente a exigência do futuro. e aqui se fala de autoinvasão porque se conjuga por dentro a voz inclinada a dizer-se, indo contra a educação de quem só pode olhar de fora. a percepção desse acontecimento está na ordem do desvario muito bem concatenado com a eloquência de quem vive como deve ser, experiência esta que, por sua vez, habita um tipo de violência.
pode ser também a hostilidade pela qual se confere a dureza dos julgamentos. (parte d)o mundo pensa algo sobre ela / que vive no mundo ignorando essa parte. ficamos então combinados que cada um se situe em sua divergência. trata-se de um exercício escutatório a imersão nisso que passa a compor caminhos para se chegar à casa com pedrinhas brancas da praia de boa viagem.
p.s. ainda que muitos se apeguem às categorias que partem da diferença entre prosa e poesia, gosto de apostar na ideia de limite que, por sua vez, tem a ver com a tensão pela qual múltiplas possibilidades de acontecimentos do texto se dão. uma copertença em que um solicita o outro e se conjugam nesse lugar tanto de encontro quanto de divergências. assim, a dedicatória do livro Poemas para pessoas que cruzam oceanos e não viajam (Editora Raiz – que agora é Cambucá –, 2022), de Melina Galete, ocupa a fronteira entre dedicatória e poema. isso lembra o que Orides Fontela fez em Transposição (1969), cuja epígrafe é um de seus poemas mais comentados. como aqui a proposta é a incorporação, seja de poemas, trechos de romances, enfim, desse lugar de palavra desencadeadora de afetos – e também uma provocação à ideia de autoria –, fez muito sentido comparecer em corpo e leitura ao trabalho poético de Melina. graças à perda de tempo de Maria Clara, ficcional ou não, mais uma alucinação poética foi possível.
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.