Coluna | Sibila
Passaporte
Mulher de ideias? Não, nunca tive uma.
Jamais repeti outras (por pudor ou por falhas
mnemônicas)
Mulher de ação? Tampouco
Basta observar o tamanho de meus pés e mãos.
Mulher, pois, de palavra. Não, de palavra, não,
Mas, sim, de palavras,
muitas, contraditórias, ai, insignificantes,
som puro, vácuo, cravejado de arabescos,
jogo de salão, intriga, espuma, esquecimento.
Mas, se é necessária uma definição
para o documento de identidade, escreva
que sou mulher de boas intenções
e que pavimentei
um caminho direto e fácil para o inferno.
Decidi deixar que a própria Rosario Castellanos se apresentasse logo de entrada.
Foi por meio de uma plataforma de streaming que cheguei a ela, graças a um filme que conta parte de sua trajetória intelectual e pessoal. No Brasil, o longa-metragem ganhou o título de Eterno feminino, em referência a seu último ensaio. No entanto, no original mexicano, o título é homônimo de seu poema Los adioses.
Castellanos foi escritora – perpassou variados gêneros literários e teóricos –, acadêmica, colaboradora de alguns jornais de seu país e feminista, tendo sido uma voz potente em defesa da mulher mexicana.
Em um de seus textos mais conhecidos, La abnegación: una virtud loca, de 1971, Castellanos sustenta que a ideia de igualdade entre os gêneros não só é falsa, como também faz com que as feministas que a reivindicam colaborem para o pensamento de que o ser homem é, de fato, o padrão a ser alcançado. Ela já adiantava nosso discurso atual em relação à equidade de gênero.
Segundo a escritora, O sexo, assim como a raça, não constrói nenhuma fatalidade biológica, histórica ou social. É apenas um conjunto de condições, um marco de referências concretas dentro dos quais o gênero humano se esforça por alcançar a plenitude do desenvolvimento de suas potências criadoras.
Rosario Castellanos corrobora com Simone de Beauvoir – mesmo sem a ter lido à época – na impossibilidade de uma definição essencialista sobre o que é ser mulher, uma vez que essa existência varia culturalmente. Partindo dessa concepção de que mulher é uma categoria cultural variável, Castellanos propõe focar na mulher mexicana – ou no que chama de (las encarnaciones concretas de la femineidad) encarnações concretas de feminilidade mexicana. E mesmo assim, observa que há uma gama dessas encarnações, visto que não seria possível igualar uma jovem indígena camponesa a outra jovem urbana universitária, por exemplo.
Aguerrida em seus textos, a escritora levanta questões não só sobre a opressão sofrida pelas mulheres, mas também sobre a apatia feminina. Rosario convoca, provoca as mulheres a reagirem, assim como também o fez Virginia Woolf.
No artigo Rosario Castellanos, feminista a partir de sus propias palavras, a pesquisadora Marta Lamas traz uma análise de Carlos Monsiváis, a qual, em mim, suscita muitas questões. De acordo com o crítico, a escrita de Castellanos singulariza-se e distancia-se da escrita feminina pelo sarcasmo e pela crítica que a liberta da sensibilidade feminina e permite-lhe escrever uma poesia admirável, despojada de qualquer véu retórico, direta, crítica… uma poesia claramente autobiográfica, mas não poesia confessional.
A questão da poesia confessional parece estar sempre presente nos textos da Sibila. No entanto, não sou eu a qualificar desta forma a criação literária de nenhuma das mulheres sobre as quais escrevo aqui, são os críticos. Sim, vou deixar em abstrato: os críticos.
O que sempre me chama atenção é o fato de eu não ver a mesma adjetivação a respeito dos escritores sobre quem já li – como Flaubert, por exemplo, que teria escrito Educação Sentimental a partir de uma experiência verdadeira, pessoal e íntima de uma paixão impossível. Não obstante, se é uma mulher a usar como matéria para escrita suas experiências, o texto, para muitos, não só se torna confessional, como a qualificação tem tom pejorativo, é tida como uma literatura menor. Não à toa Sylvia Plath recusava a denominação.
Outro aspecto observável na fala do crítico citada acima é a questão do sarcasmo e da ironia presente nos textos de Castellanos. O tom de escárnio vem sendo atribuído a uma escrita de homens há séculos, característica que Monsiváis distancia de uma tal sensibilidade feminina.
O que faz a escrita de Rosario Castellanos ter valor para Monsivais, então, é justamente o fato de não ter traços considerados femininos, mas, sim, masculinos. O que quero destacar é que junto ao elogio de uma autora costuma vir um desprezo por aquilo que seria próprio à escrita feminina e uma valorização do que seria atributo da masculina. É um ardil.
Quando criança, Castellanos ouviu seu pai lamentar a morte do irmão por ter sido o filho homem quem havia morrido. Teve formação acadêmica em Filosofia e Estética em uma época em que as mulheres mexicanas ainda não tinham conquistado o direito ao voto. Adulta, teve um casamento difícil em razão das traições sofridas frequentemente. Era professora na universidade, assim como o marido. Passou por alguns abortos espontâneos até conseguir ter seu filho. Não abriu mão da carreira pela maternidade.
Esses eventos, aqui elencados apressadamente, foram fruto de reflexão na escrita de Castellanos. Ela parte de suas experiências para pensar seu mundo de mulher mexicana inserida em uma sociedade patriarcal em que é esperado da mulher que ela transcenda por meio da maternidade.
Suas escolhas também a levaram a um caminho solitário percorrido por muitas feministas. Em seu texto Feminismo a la mexicana, a escritora afirma que a mulher que tenta exercitar sua vontade, fazer uso de sua inteligência, realizar uma vocação, sabe que corre um risco: a solidão. Esta é também tema de seus textos, pois não abriu mão de sua vontade, inteligência e vocação.
Morreu muito jovem, aos 49 anos, em consequência de um choque elétrico, quando exercia o cargo de embaixadora mexicana em Israel.
Abaixo trago três poemas, por mim traduzidos, colhidos – assim como o poema que abre o texto – do livro Poesía no eres tú.
Conselho de Celestina foi escolhido por sua erudição, por estabelecer uma intertextualidade com a obra La Celestina, de Fernando Rojas, datada de 1499. A personagem Celestina é uma alcoviteira. Nessa narrativa dialogada, ao gosto da época, o desejo de uma das personagens faz com que o desfecho seja trágico.
Já os poemas Advertência a quem chega e Revelação foram escolhidos pelo tema da solidão e do desafio de existir.
Conselho de Celestina
Desconfia daquele que ama: tem fome,
não quer senão devorar.
Busca a companhia dos fartos.
Esses são os que dão.
Advertência a quem chega
Não me toca o braço esquerdo. Dói
de tanta cicatriz.
Dizem que foi uma tentativa de suicídio
mas eu queria apenas dormir
profunda e longamente, como dorme
a mulher que é feliz.
Revelação
Soube de repente:
há outro.
E, desde então, durmo apenas a metade
e já quase não como.
Não é possível viver
com este rosto
que é o meu verdadeiro
e que ainda não conheço.
_______________________
Renata de Castro ( linktr.ee ) é poetisa, professora, tradutora, feminista e doutora em Literatura. Tem três livros publicados: O terceiro quarto (Benfazeja, 2017), Hystéra (Escaleras, 2018) e De quando estive em Alto-Mar: poemas de afogamento e algumas mortes felizes (Escaleras, 2021). Fez parte das Antologias Poéticas Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2016), Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017), Senhoras Obscenas (Patuá, 2019) e da antologia bilíngue de poesia contemporânea de escritoras brasileiras e cubanas Sem mordaça. Sin mordaza (2021). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.