Coluna | Alguma coisa em mim que eu não entendo
Hoje o dia é de curadoria. Acaba de florir o Livro do Verso Vivo, primeira coletânea em língua portuguesa dedicada a poemas que tematizam a natureza e a relação do humano com as demais formas de vida que habitam nosso planeta. A convite do poeta Mauricio Vieira, fui um dos organizadores da antologia (disponível no site da editora Outra Margem), que reuniu poetas de toda a lusofonia, da Amazônia a Moçambique. Páginas impressas, em palavras de muita gente e ilustrações da incrível Jé Hãmãgãy, aproveito esta coluna de quase primavera para compartilhas & ressaborear alguns dos poemas:
Júlia de Carvalho Hansen
Procuro no vento
a consciência das plantas.
Noto que o que se eleva
tem raiz. Recuo mil anos
para afirmar: mil anos!
E conquistar
o silêncio? Adiante.
Se está em algum lugar
a experiência dos deuses
mora nas frutas
Hirondina Joshua
Pleura
o mundo faz barulho à procura desse animal. ele que sobe e desce nas alturas supostas pelas grandes tempestades. deus vê as caras brutas dos sentimentos, perdoa e continua….o animal geme de fome. na nuca tem água violenta. sede mais antiga que o corpo com todas distâncias da terra. esse animal universal concentrado na insónia, arrasta para fora a estação circular das poças. veda a treva e a luz no mesmo saco. belo clarão o que se faz por cima das entoações secretas.
Maria Esther Maciel
Conto de jardim
A pequena lagarta
que caiu da samambaia
sobre o meu braço
se movia em desespero
e quando a levei
de volta
ao vaso da planta
a moça da limpeza
falou, sem pejo:
– jogue na lixeira,
lagartas são pragas
e estragam as folhas
do jardim inteiro.
Mas eu não podia
matar uma larva
tão verde e tão perplexa
como aquela
tampouco tive coragem
de jogá-la pela janela.
Desci até o jardim do prédio
e a coloquei sobre uma pedra
pois tudo o que é vivo
e me pede vida com medo
me enternece.
E sempre cedo.
Conceição Lima
Gravana
A Alda Espírito Santo
Na nossa terra, amiga, há um tempo
de silêncio e caules ressequidos.
Chega com metacarpos definhados
quando na úbua desfalece a trepadeira
Entra com o bafo poeirento
rarefeitas as unhas, candrezados os ramos
e ulula de mansinho nos bananais
como um melancólico aviso
É um tempo de folhas sem orvalho e men-lôfi
de paguaês doridos, carentes de leite
de soturna claridade ao pôr do sol
A fria brisa nos diz que esse tempo virá
E cobertas de pó
ficarão as folhas do pinincano
imoladas ao hálito da terra
Será triste o rio e seu nome
na lonjura do váji
mortas estarão as casas e suas janelas
morto o suin-suin e seu canto
morto o macucú e a ubaga velha
A pele de pitangueiras e salambás beberá
das frutas torrenciais a lembrança
porque o luchan estará morto
amiga
Mas sobre a pedra e o fogo
tua voz de imbondeiro crescerá do barro
para resgatar a praça em nova festa
para ressuscitar o povo e sua gesta.
Gravana — estação seca e fresca
Úbua — vedação
Candrezados — definhados
Men-lôfi — redemoinho
Pagauê — planta da família dos cactos
Pinincano — uma planta
Váji — grota
Suin-suin — um pássaro
Luchan — lugarejo
Ubaga — panela de barro
Salambá — um fruto
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Thássio Ferreira é escritor, autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016), Itinerários (Ed. UFPR, 2018), agora (depois) _(Autografia, 2019) e Nunca estivemos no Kansas (Patuá, 2022). Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Germina, Revista Ponto (SESI-SP), aqui na Vício Velho, InComunidade (Portugal), e outras. Seu conto _Tetris foi o vencedor do Prêmio Off Flip 2019, e seu livro inédito Cartografias, finalista do Prêmio Sesc 2017. Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Mantém página no Facebook e o Instagram