Coluna | Sibila
Mil centauras a rir
Conheci um pouco da poesia de Francisca Júlia quando, há alguns anos, buscava mulheres para enriquecer minhas aulas de Literatura. Incomodava-me ser sempre Rachel de Queiroz a primeira escritora a aparecer nos livros didáticos, seguida de Cecília Meireles e Clarice Lispector, como se não houvesse nenhuma outra antes delas. Tradicionalmente, as escritoras só aparecem no último ano do ensino básico.
Mas não só o gênero – que dificulta sua entrada nos manuais escolares – pesa hoje em dia contra Francisca Júlia. O fato de ter escrito sobretudo poemas parnasianos – talvez a escola literária mais escanteada da história da literatura brasileira – parece favorecer seu apagamento. Mas esta é apenas uma hipótese.
A poetisa foi tão boa em aplicar o rigor das convenções do Parnasianismo em sua criação poética que incorporava em seus poemas a impassibilidade da musa deles. Enquanto nomes parnasianos canônicos como Olavo Bilac resvalavam em sujeitos poéticos propriamente ditos, isto é, deixavam escapar um tanto de subjetividade, Francisca Júlia se atinha à descrição de cenas e cenários, impassível como a estética exigia.
Se a crítica atual concorda que os poemas mais parnasianos, em sentido estrito, da literatura brasileira são de Francisca Júlia, por que os exemplos apresentados nos manuais não são de poemas dela? Por que nenhum dela? Se não é uma questão de qualidade literária, do que se trata?
O caso de Francisca Júlia é, no mínimo, interessante, é um exemplo inconteste de nossa estrutura patriarcal. Ao publicar, com menos de vinte anos, seus primeiros poemas em jornais, foi lida como um homem sob um pseudônimo feminino. Ora, a qualidade de seus versos foi reconhecida ao ponto de poetas e críticos da época não verem a possibilidade de uma mulher tê-los escrito. Todavia, esclarecido o engano, foi preciso repensar a criação da poetisa, reposicioná-la.
O professor e pesquisador Henrique Marques Samyn fez um levantamento da recepção de Francisca Júlia desde sua primeira publicação na última década do século XIX até o começo do século seguinte. Se observarmos sua coleta, não restam dúvidas de que a qualidade dos versos da poetisa não foi negada pela maior parte de seus pares. No entanto, houve quem achasse muito inapropriado que uma mulher escrevesse, ou pior, publicasse. A própria Francisca Júlia conta em uma carta a Max Fleuss que, ao publicar seu primeiro poema, o poeta Severiano de Rezende a aconselhava a não escrever mais versos. Segundo a poetisa, ele teria concluído que haveria ocupações mais úteis a ela, como os trabalhos com a agulha.
Ainda de acordo com a pesquisa de Samyn, a suposta feminilidade que não era encontrada nos poemas de Francisca Júlia, uma vez que escrevia tão bem, era compensada e descrita em sua aparência e comportamento. Afinal, não ser feminina entre o final do século XIX e início do XX podia ser compreendido como sinônimo de ser feminista, adjetivo muito mal visto.
O que mais me chama atenção no caso da poetisa é o flagrante cinismo a respeito da assexualidade ou ageneridade da literatura. Há inúmeros exemplos de mulheres que tiveram sua criação diminuída por ter marcas da dita feminilidade – a saber, sentimentalismo, interesse por detalhes, sutileza – na história da literatura ocidental. O padrão foi estabelecido a partir da escrita de homens, jamais adjetivada como masculina; mas, sim, neutra. Dito de outra forma, a perspectiva masculina na literatura não é lida como marcada. Marcado é tudo aquilo que não é o padrão, ou seja, marcada é a escrita da mulher se há algo nela que indique que foi escrito por uma mulher.
No estudo mencionado anteriormente, Samyn destaca vários registros feitos pela imprensa do período pesquisado cujo destaque é uma tal masculinidade dos textos de Francisca Júlia: o Correio Paulistano falou em “vigor másculo”; O Paiz, em “máscula autora”; o mesmo jornal alguns anos depois, fala em “alexandrinos másculos”; O Commercio de São Paulo define-a como “poderosa individualidade de um homem de letras”, e Careta elabora a frase “Nada, nos másculos versos de Francisca Julia, denuncia a mulher.” Talvez fosse o caso de investigar o que seriam versos másculos, já que parece ser todo e qualquer verso não marcado, isto é, feminil. Da obra de Francisca Júlia, um dos poemas mais aclamados pela crítica pela qualidade de sua composição estrutural – e, claro, pela impassibilidade, descaradamente, dita masculinidade – é Dança de centauras, transposto abaixo:
Patas dianteiras no ar, bocas livres dos freios,
Nuas, em grita, em ludo, entrecruzando as lanças,
Ei-las, garbosas vêm, na evolução das danças
Rudes, pompeando à luz a brancura dos seios.
A noite escuta, fulge o luar, gemem as franças;
Mil centauras a rir, em lutas e torneios,
Galopam livres, vão e vêm, os peitos cheios
De ar, o cabelo solto ao léu das auras mansas.
Empalidece o luar, a noite cai, madruga…
A dança hípica para e logo atroa o espaço
O galope infernal das centauras em fuga:
É que, longe, ao clarão do luar que empalidece,
Enorme, aceso o olhar, bravo, do heroico braço
Pendente a clava argiva, Hércules aparece…
O cenário é de liberdade: patas dianteiras ao ar, bocas livres de freios, nudez, dança, seios expostos, risos, galopes livres e cabelos soltos. As centauras estão reunidas sob a luz da lua, como bruxas, resguardadas pela noite – momento reservado à discrição e ao segredo.
É preciso considerar que centauras são seres híbridos, meio animais selvagens – éguas –, meio mulheres. Pode-se estabelecer uma relação entre estes dois seres, uma vez que, na entrada do século XX, as mulheres ainda eram vistas – num ideário patriarcal – como mais ligadas aos ciclos da natureza em contraposição à cultura e racionalidade masculinas.
O primeiro verso já marca a condição das centauras com destaque para a ausência de freios. Não os ter vai além de dizer que eram livres. Os freios levam o leitor a se lembrar de que existem formas de dominar uma égua, a saber, pela boca. Se não obedece ao comando, é ferida. E a boca é símbolo de linguagem, fala, discurso. As centauras estão em uma situação de autonomia, donas de si.
Nos dois quartetos, o quadro é de centauras livres, despreocupadas, rindo e brincando. Não estão guerreando umas contra as outras, estão jogando. O ambiente é de sororidade, isto é, de irmandade entre mulheres, entre irmãs.
Algumas interpretações desse poema leem a descrição das centauras numa perspectiva erótica. As centauras estão nuas, com os seios livres e os cabelos soltos. No período em que foi publicado – o poema compõe Esfinges, do início do século XX –, era sinal de recato mulheres usarem os cabelos sempre presos com algum penteado. Estar com os cabelos soltos só era possível na intimidade da alcova.
No entanto, nesse espaço de sororidade – e, portanto de solidariedade e proteção –, não havia o olhar do outro, isto é, não havia nada que as erotizasse. Elas se sentiam livres da sexualização de seus corpos, que a rigor depende de quem os sexualize, no caso, os homens.
O fim da alegria inicia-se no primeiro terceto. Apenas na última estrofe ficamos sabendo quem as faz galopar não em liberdade, mas em fuga, Hércules. Seus adjetivos são enorme, aceso, bravo, heroico e argivo; todos associados à potência. Pensados junto à clava, assumem um caráter de violência. Clava é um símbolo fálico. Por não estar em riste, estar pendente, é uma ameaça que se impõe.
Embora as centauras estivessem em lutas e torneios, não há nada que denote bestialidade, ou melhor, agressividade nos dois quartetos. Pelo contrário, o oitavo verso é fechado com a ideia de mansidão. É a presença de Hércules que tensiona a cena e acaba com o ambiente de segurança. Ainda ao longe, a virilidade que ele simboliza ameaça a comunhão das figuras femininas.
Considerando o contexto no qual viveu e escreveu Francisca Júlia, é difícil não relacionar Hércules, cujo nome só aparece no último verso, aos freios, do primeiro verso. A imagem masculina liga-se ao machismo estrutural que afugenta as mulheres, ainda que numerosas e, por vezes, ainda que com armas em mãos. Em minha leitura, apesar do rigor descritivo parnasiano – ou talvez justamente pela possibilidade de ser objetivo ao extremo –, a poetisa realiza uma crítica ao status quo, ao patriarcado. Vejo Francisca Júlia, de dentro do próprio tecido opressor, esgarçar suas tramas, uma vez que a transformação não se dá apenas externamente, é preciso se infiltrar.
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1 SAMYN, Henrique Marques. Da “poetisa bonita” à “máscula autora”: sobre a generificação de Francisca Júlia. Miscelânea, Assis, v. 25, p. 39-60, jan.-jun. 2019.
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Renata de Castro ( linktr.ee ) é poetisa, professora, tradutora, feminista e doutora em Literatura. Tem três livros publicados: O terceiro quarto (Benfazeja, 2017), Hystéra (Escaleras, 2018) e De quando estive em Alto-Mar: poemas de afogamento e algumas mortes felizes (Escaleras, 2021). Fez parte das Antologias Poéticas Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2016), Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017), Senhoras Obscenas (Patuá, 2019) e da antologia bilíngue de poesia contemporânea de escritoras brasileiras e cubanas Sem mordaça. Sin mordaza (2021). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.