Coluna | Palimpsesto
Gosto muito de uma crônica de Clarice Lispector em que ela discorre sobre forma e conteúdo. Como é curta, vale sua transcrição na íntegra:
“Fala-se da dificuldade entre a forma e o conteúdo, em matéria de escrever; até se diz: o conteúdo é bom, mas a forma não etc. Mas, por Deus, o problema é que não há de um lado um conteúdo, e de outro a forma. Assim seria fácil: seria como relatar através de uma forma o que já existisse livre, o conteúdo. Mas a luta entre a forma e o conteúdo está no próprio pensamento: o conteúdo luta por se formar. Para falar a verdade, não se pode pensar num conteúdo sem sua forma. Só a intuição toca na verdade sem precisar nem de conteúdo nem de forma. A intuição é a funda reflexão inconsciente que prescinde de forma enquanto ela própria, antes de subir à tona, se trabalha. Parece-me que a forma já aparece quando o ser todo está com um conteúdo maduro, já que se quer dividir o pensar ou escrever em duas fases. A dificuldade de forma está no próprio constituir-se do conteúdo, no próprio pensar ou sentir, que não saberiam existir sem sua forma adequada e às vezes única.”
A crônica está no livro A descoberta do mundo (p. 254-255) e foi publicada originalmente no Jornal do Brasil, em 20 de dezembro de 1969.
Durante a escrita de meu último romance – A face mais doce do azar (Claraboia, 2023) – , essas palavras ocuparam boa parte das minhas reflexões. Apesar de inovar pouco na escrita, gosto de pensar que muito do conteúdo está na forma e cito aqui um exemplo bastante ilustrativo.
Ricardo Duarte, meu grande amigo e responsável pela leitura crítica do livro, iniciou sua leitura antes mesmo de eu ter terminado a escrita. Minha ansiedade havia me atropelado, e, antes que ele confirmasse o trabalho, me vi enviando-lhe as primeiras páginas do meu romance.
Por me conhecer muito bem, Ricardo sabe como muitas vezes me aprisiono em expectativas e me adianto sem sequer perceber o que pede tempo. Tempo que ele usou muito sabiamente para ler as primeiras páginas do meu romance, com o cuidado de um leitor crítico já.
Não demorou, contudo, a que ele me apontasse um fato interessante em um dos parágrafos: “aqui, a divergência entre nora e sogra está no tempo verbal usado para cada uma.”
Vou transcrever o trecho em questão:
“Se estivesse sentada, a sogra notava como logo perdia o ânimo. Se limpasse a casa, a outra observava como era lenta com o rodo. Se começasse a se arrumar para o trabalho – minha mãe, a única a trabalhar naquela casa –, o tempo em frente ao espelho era contado em voz alta.”
Enquanto o imperfeito do subjuntivo marca as ações da nora, a sogra age pelo imperfeito do indicativo. Não havia notado aquilo até aquele momento. O conteúdo na forma. A briga velada de anos, dois tempos e espaços incompatíveis obrigados a conviver em um mesmo tempo e espaço, tudo marcado pelo modo verbal. Ainda que não tivesse sido uma escolha consciente, conteúdo e forma nasceram juntos, a confirmar as palavras de Clarice.
Meu texto, originalmente, não separava completamente as personagens pelos tempos verbais: “Se começasse a se arrumar para o trabalho – minha mãe era a única que trabalhava fora –, o tempo em frente ao espelho era contado em voz alta.”
Assim que Ricardo entreviu o conteúdo na forma, os dois quebramos a cabeça para manter todos os verbos do trecho correspondentes à mãe da narradora no imperfeito do subjuntivo. Deixo aos leitores julgarem se valeu a pena o esforço.
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Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger. Mantém uma coluna na revista Vício Velho.