FETUS IN FETU – JOÃO PAULO PARISIO

Coluna | Sentido


Só os filhotes de tubarão se devoram no útero, dizem. Entretanto, bem no início da gestação humana, naquele estágio em que nem a mãe sabe estar grávida, é possível um gêmeo englobar o outro. A ciência dá ao fenômeno o nome de fetus in fetu. Muitas vezes, contudo, o gêmeo parasita, como isso também se chama, embora seja uma denominação injusta, já que o outro gêmeo é que de certa forma é um usurpador ou mesmo um assassino, continua a desenvolver-se ali dentro, ainda que com algumas partes para fora. Por isso todos nós já vimos no Fantástico e no Youtube aquelas crianças indianas com barrigas enormes, seis braços ou oito pernas (não sei por que essas coisas parecem acontecer mais na Índia que em outras partes de nosso pobre planeta). São dois, três, quatro gêmeos diferentes, infusos num só organismo, o do gêmeo vencedor, que os devorou e ao mesmo tempo os preservou, como os filhos de Cronos ficaram vivos dentro dele mesmo depois que os engoliu, como o pequeno Zeus ficou vivo na coxa de sua mãe, Reia, como Atena brotou do cérebro de Zeus. Até onde sei, aliás, os gêmeos sucumbidos nunca chegam a ter cérebro, o que é uma grande felicidade para a saúde de nossas mentes. Muitas vezes, entretanto, o dito parasita é uma presença discreta. Alguns descobrem apenas adultos e mais ainda morrem sem saber que carregam um gêmeo incluso como um dente. O gêmeo vencedor torna-se o insciente museu de suas vítimas vivas.

Pois bem. Eu tenho desenvolvido uma opinião: o fenômeno do fetus in fetu se dá também com romances. Alguns romances, não sei se todos, trazem em si o corpo malsucedido de outro romance que numa fase inicial de desenvolvimento, aquela na qual nem o romancista sabe que gesta uma obra, disputou com ele a primazia e sucumbiu, mas continuou a desenvolver-se às suas custas, conquanto derrotado e acerebrado. A versão que se dá aos olhos em primeiro plano é apenas o organismo triunfante. Comecei a pensar nisso durante a leitura de Frankenstein. Todos conhecem a intriga do romance, eu mesmo conhecia antes de ler: um cientista genial e ambicioso descobre a maneira de atribuir vida a um corpo destituído dela (que ele mesmo confecciona), usando como princípio desencadeador a eletricidade. Quando a criatura enfim adquire vida e abre os olhos, Victor Frankenstein, o cientista (ao longo de todo o livro, a criatura é chamada apenas assim, criatura), horroriza-se ante sua obra, compreende seu caráter de abominação, e foge. Pouco depois, talvez inverossimilmente, retorna. Ao encontrar a casa vazia, conclui, talvez mais inverossimilmente ainda, como acontece nos sonhos, livres de escrúpulos realistas, que a criatura saiu e encontrou seu fim no mundo vasto e cruel, de modo que não precisa mais preocupar-se com ela. O pesadelo acabou. Algum tempo depois, entretanto, recebe a notícia do assassinato torpe de uma criança de sua família, não me recordo bem se seu irmão ou irmã mais nova. Ao retornar à terra natal, a Suíça, acaba por descobrir que sua criatura está viva, é ela a assassina da criança. De certa forma, uma criança que assassina uma criança.

Não quero aqui entrar em minúcias do enredo; basta-nos saber que muitos outros assassinatos virão, sempre pelas mãos da criatura, cujo método é a esganadura, sempre de pessoas caríssimas a Victor. Minha hipótese é que, com sete décadas de antecedência, a autora, Mary Shelley, tenha, sem saber, prefigurado o argumento de outro livro célebre, cuja intriga básica também é conhecida de todos quantos tenham um mínimo interesse por literatura ou cinema: O médico e o monstro. Assim, a criatura seria apenas um desdobramento da mente de Victor Frankenstein. Um caso, em suma, de transtorno dissociativo de identidades, a dupla personalidade dos folhetins, exatamente como acontece na obra de Robert Louis Stevenson, ainda que ele mesmo tenha precisado recorrer a um artefato mítico, típico da cultura pagã, a poção, para assimilar e elaborar seu conceito inovador. Essa possibilidade, um outro livro ocluso e encrustado no aparente, ao largo da qual a própria Shelley teria passado, talvez por ser horrível demais, seria o fetus in fetu, o gêmeo parasita de Frankenstein. O inconsciente coletivo, que em algum momento passou a chamar a criatura pelo nome do criador, tinha razão, pois conhece a si mesmo: a criatura é Frankenstein. Mas essa não se propõe uma teoria que invalida e revoga o romance tal como se apresenta: a teoria é precisamente que eles coexistem, universos não paralelos mas imbrincados, entranhados, entreentranhados. Assim, sob a pele da fábula pública e notória, imiscuída em sua intimidade, pulsante em suas entrelinhas, teríamos talvez uma outra fábula sinistra, secreta, malformada. Se não é um organismo completo e coerente, podemos deduzir em alguma medida como seria se fosse. Não a estória de um químico brilhante que logra um feito extraordinário e transgressor, mas a de um acadêmico infeliz (talvez até um químico brilhante, as hipóteses aqui não se excluem), que no fundo odeia sua família, odeia aqueles que também ama e que também o amam, odeia tanto e tão insuportavelmente que cria outro si em si para executar os desígnios que não ousa confessar-se à luz do sol ou da lua.

É ele que abandona a academia, retorna à terra natal e mata um a um seus entes queridos. A narrativa de Frankenstein poderia ser até mesmo a que ele cria para si a fim de encobrir a verdade: não há nenhuma criatura, nenhuma grande descoberta científica (ou há uma completamente diferente, mais aparentada das de Freud), há apenas a sua sombra, há apenas o seu demônio, como no livro oficial Victor tantas vezes chama a criatura. Mesmo nesse livro oficial a criatura nunca é vista por ninguém senão seu criador, justamente como acontece a uma pura criação da mente. Tudo que sabemos a respeito dela é o que nos é dito por Victor, mesmo o que se passou enquanto ela esteve só nos é dado a conhecer apenas pelo relato que Victor faz de seu relato. A criatura aparece nos lugares mais improváveis: dependurada de uma escarpa vertical na cordilheira do Jura, numa ilha deserta no norte da Europa, numa hospedaria à beira do lago de Como, em que de alguma forma ela conseguiu entrar clandestinamente, e mata, mata, mata. Ninguém nunca a vê. Ela é que nunca perde a pista de Victor, tem uma sensitividade quanto ao paradeiro de seu antagonista que rivalizaria com a atribuída a Lampião, move-se em seu encalço a uma velocidade desconcertante mesmo para suas pernas agigantadas. O próprio texto diz: a criatura tinha o aspecto de uma versão degenerada de Victor. O mesmo se dá com Dr. Jekyll e Mr. Hyde, com a única diferença de que esse último é menor que seu modelo, enquanto a criatura é maior que Victor. Ambos os livros nasceram de sonhos — os parlamentos do inconsciente — de seus autores, após dias de angústia criativa, de um sentimento de impotência intelectual. É bem verdade, e aí o gêmeo triunfal se impõe, que quando do primeiro assassinato Victor está longe demais para ter sido o assassino, mas todas as outras mortes, atribuídas à criatura, acontecem ao seu redor, bem de perto, ao alcance de suas mãos.

Há uma exceção à assertiva de que ninguém mais vê a criatura e de que só sabemos dela através de Victor. Frankenstein tem algo daquelas bonecas russas (o que nos remete mais uma vez a gêmeos encapsulados). O relato da criatura se dá dentro do relato de Victor que por sua vez fica dentro do relato de Robert Walton, arrojado navegador que o acolhe em seu navio. Esse Walton não apenas transcreve a estória da criatura contada por Frankenstein: chega a avistá-la ao longe, perto do Ártico, quase como um yeti, um abominável homem das neves. Fazê-lo ter visto a criatura e nos contar isso parece ter sido o golpe de mestre do gêmeo vencedor a fim de emparedar seu concorrente, uma vez que o relato de Walton é a boneca mais exterior dessa matrioska. O avistamento e a menção envolvem e isolam o gêmeo preterido, condenam-no a uma obscura subexistência. Provam que a criatura existe para além da mente de seu criador. O caráter isolado desse fato e seu posicionamento estratégico no livro, entretanto, apenas depõem a favor da tese de que há uma verdade subterrânea, um alçapão no assoalho da narrativa.

É curioso pensar que Robert Louis Stevenson nunca tenha dado demonstração de perceber isso, embora decerto conhecesse a obra de sua antecessora, e digo antecessora num sentido muito estrito, genealógico, pois se Frankenstein é a obra inaugural da ficção científica e uma evolução ou transformação do gênero gótico, O médico e o monstro também se situa nesse pântano nebuloso entre dois mundos, o arcaico e o industrial, o religioso e o secular, o supersticioso e o racional, o fatalista e o contingente, o místico e o científico, o mágico e o técnico. Seria interessante saber em que ponto da vida Stevenson leu Frankenstein, e que efeito teve sobre ele. Será um autor mais influenciado pelos gêmeos parasitas que pelas versões epidérmicas?

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João Paulo Parisio (@jpparisio), nascido no Recife em 4 de setembro de 1982, é autor de Legião anônima (contos, 2014, Cepe editora), Esculturas fluidas (poemas, 2015, Cepe editora), Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018, editora Patuá) e Retrocausalidade (romance, 2020, prêmio Pernambuco, Cepe editora), obras que o situaram entre os expoentes da literatura brasileira contemporânea. Apontado pelo crítico José Castello como “um dos principais nomes da nova geração de narradores brasileiros”, tem ainda textos veiculados em revistas, jornais e sites especializados.