EUNICE CALDAS E A LOUCURA DE SER LIVRE – RENATA DE CASTRO

Coluna | Sibila


 

Quando menina, quis ser arqueóloga. Acredito que em algum momento percebi que esse plano era pouco viável, principalmente em razão de onde cresci e sempre estudei. No entanto, o desejo pela busca e o prazer da descoberta estiveram sempre presentes em minha vida. Assim explico como me é prazeroso puxar a pontinha de um fio e ver o que seu desenrolar me traz.

Já escrevi sobre Renée Vivien aqui, mas continuo minhas pesquisas sobre ela. E foi tentando descobrir se havia alguma produção em português sobre a poetisa britânica, cuja obra foi toda escrita em francês, que cheguei a dois textos. Um foi escrito pela pesquisadora Julie Oliveira da Silva em novembro do ano passado e o outro, também por ela em colaboração com Eduardo da Cruz em dezembro, ou seja, textos muito recentes.

Acredito que também eles chegaram à Eunice Caldas por meio de Renée Vivien. Isso porque se procurarmos pela recepção de sua obra em terras brasileiras, encontraremos o crítico literário Benjamin Lima, n’O País, comentando o livro de poemas de Eunice, Amphitrite, e estabelecendo comparação entre ela e Vivien. Para aqueles que sabem quem foi a Safo de 1900 – um dos epítetos de Vivien – a razão já se anuncia: também ela foi uma poetisa sáfica e, ao que tudo indica, lésbica.

Atualmente, temos uma ferramenta bastante sensível de verificação de conteúdo, os sites de busca. E ainda que coloquemos o nome de Eunice Caldas em sites especializados, notaremos como não há quase nada sobre ela, não há fotos, não há sua criação literária, nem mesmo sua literatura pedagógica. Esta é uma pista muito forte para que percebamos que sua voz foi silenciada. A questão é: por quê? 

Eunice Peregrina de Caldas nasceu em Poços de Caldas, Minas Gerais, em 1879. Vem de uma família pouco ortodoxa, em que cada membro recebeu um sobrenome diferente. Era irmã do conhecido imunologista, fundador do Instituto Butantan, Vital Brazil. Das seis filhas, três tornaram-se professoras, incluindo Eunice. Como pedagoga, ela teve papel de destaque na educação infantil da cidade de Santos, em São Paulo. 

Além de seu trabalho como educadora, Eunice Caldas era feminista atuante. Foi uma das fundadoras da Associação Feminina Santista, em 1902. Ser feminista já seria motivo suficiente para seu nome ter sido apagado da história, assim como tantas outras que lutaram pelas causas femininas na primeira metade do século XX.

Todavia, Eunice Caldas parece ter rejeitado mais algumas normas de conduta de sua época. Ela não se casou, dedicou-se arduamente à carreira, escreveu um livro de poemas sáficos pouco codificado e, como sugere Silva e Cruz, viveu um relacionamento homossexual não-monogâmico com as portuguesas Ana de Villalobos Galheto e Maria da Cunha. Esta última faleceu em 1917, permanecendo presente nas obras das outras duas. 

Eunice Caldas publicou Amphitrite em 1924. Foi uma atitude bastante corajosa, se considerarmos que anos antes, em 1910, ela havia sido internada no Hospital Psiquiátrico do Juquery, tendo ficado lá por alguns meses sob o argumento de que apresentava comportamento instável, pois, apesar de ter trinta anos, havia rompido dois noivados contra a vontade dos pais, além de ser muito independente. 

Após a publicação de Amphitrite, em 1930, foi novamente internada no sanatório Pinel e, posteriormente com seu fechamento, transferida para o sanatório Bela Vista. Permaneceu encerrada e emudecida até sua morte em 1967 a partir de um diagnóstico que apresentava “dedicação à profissão”, “gosto pelo trabalho”, “atividades intensas” e “procura por independência” como justificativas de internação. Se Eunice Caldas, de fato, precisava de cuidados psiquiátricos, não há registros. 

Seu apagamento foi tão efetivo que não encontramos nem um exemplar de Amphitrite em sebos virtuais nem um único poema em sites de poesia. Como Silva e Cruz conseguiram de um familiar a digitalização de seu livro – que neste ano, completa um século –, há em mim esperança de que alguma editora o reedite. 

Em vista disso, precisarei me restringir aos trechos de poemas publicados no artigo dos dois pesquisadores mencionados. De acordo com eles, o livro foi todo dedicado a sua amante Ana de Villalobos Galheto, sendo os poemas permeados de experiências erótico-afetivas, como o transcrito abaixo:

Sabes amar com delírio, ao extremo,
Fazendo de teu amor – ente supremo –
Sacrifício de amar.
Que se te compreendesse a ardência imensa,
Poderia mover como uma prensa
Teu seio a palpitar.

Que sou de Natureza muito fria,
Que vivo esvoaçando noite e dia
E que não sei amar.
Embora no delírio – êxtase de amor –
Abra-me como a mais mimosa flor,
Que o sol vem afagar.

Os versos apresentam imagens orgásticas como “amar com delírio” e “êxtase de amor”. É no “delírio” que o sujeito poético abre-se em flor, uma representação clássica da excitação sexual feminina, visto que há um movimento real de expansão e abertura da vulva como um todo. Ademais, a excitação é também evocada pelos elementos de fogo, como a “ardência” e o “sol”. 

Entretanto, o que mais me agrada neste poema é a ideia da prensa. Sabemos que a prensa é um objeto de pressão que comprime duas partes. Bem, o prazer feminino se dá, para um sem número de mulheres, pela pressão e fricção. De modo que, a meu ver, é uma metáfora erótica que foge completamente do erotismo fálico – penetrativo, portanto – cristalizado na tradição poética. 

O título do livro também nos sugere uma relação estreita com o feminino. Amphitrite foi a nereida – um elemental da água – tomada como esposa por Posseidon. Isto é, além de sua origem ser o elemento água, tornou-se a deusa dos mares. Para a cultura grega, da qual Amphitrite faz parte, o que é líquido, úmido e frio representa o feminino. Apesar de essas associações terem uma perspectiva pejorativa – pois patriarcal –, nada mais característico da excitação e orgasmo femininos que a umidade, as águas. 

Assim, versos como os do poema CaprichosQuisera que meus olhos dulçorosos/ Fossem fontes perenes de ventura,/ E neles, ó criatura,/ Afogar-te, afogar-te – revelam o erotismo presente no olhar de quem deseja e uma associação entre o desejo e a água – “fonte” – que sacia, mas também mata por afogamento, ou seja, asfixia, como a pequena morte, como dizem os franceses ao se referirem ao orgasmo.

Além do prazer feminino, Eunice deixou pistas de seu relacionamento com Ana e Maria:

[…]
Uma outra boa amiga também tenho,
Que é melancólica e triste no empenho
De decantar a vida.
Também me acompanhava nesse instante,
E, com ar magistral e petulante,
Sonhava ser querida.

[…]
Com um Lagrima Christi ainda cheio,
Traz-nos esta mensagem:

[…]
Cantemos só a glória da alegria
E essa acariciadoura fidalguia,
Que fielmente amamos,
Três almas devotadas à beleza,
Amando só da arte a realeza
Felizes, pois, sejamos.

E em outro poema:

Jurei folgar e dar prazer a grande,
A um coração que em amor feliz se expande
E faz enternecer,
Por muito merecer.
Compensador,
Animador,
Afeto
Secreto.

Éramos três, embora não cardeais;
Corações ternos, gêmeos em ideais,
Que disputam a palma
De possuir a calma
Capaz de amar.
E reverenciar
O amor,
Em flor.

Nestes últimos versos, leio uma predisposição à aprendizagem do amor – em específico, o amor sáfico. Afinal, é preciso calma, paciência e persistência para amar. Como aventa o filósofo francês Alain Badiou, é possível definir a relação amorosa como um “comunismo mínimo”, tanto mais a três. 

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Renata de Castro 
( linktr.ee ) é poetisa, professora, tradutora, feminista e doutora em Literatura. Tem três livros publicados: O terceiro quarto (Benfazeja, 2017), Hystéra (Escaleras, 2018) e  De quando estive em Alto-Mar: poemas de afogamento e algumas mortes felizes (Escaleras, 2021). Fez parte das Antologias Poéticas Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2016), Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017), Senhoras Obscenas (Patuá, 2019) e da antologia bilíngue de poesia contemporânea de escritoras brasileiras e cubanas Sem mordaça. Sin mordaza (2021). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.