coluna | palavra : alucinógeno
entre poema e prosa, como dizia leminski, há muita porosidade. vale dizer que narrar uma história não deixa de ser um ato poético por se tratar de um gesto criativo. entra-se na narrativa por condução das imagens. os versos deixam sua categoria poemática para consumação prosaica das linhas sem cortes. parágrafos. há grafos de melancolia na feitura de um ritmo mais alongado. talvez seja algo como enxergar a poesia em sua gênese, pr’além das categorias versificantes ou das teorias literárias. há poesia na narrativa, o poema não se restringe a um gênero e o romance carrega no corpo a sua poética.
em outono de carne estranha houve uma confluência de imagens na amarração das histórias, e o impacto da paisagem poética pode muito bem traçar o modo como se desenham as possíveis leituras. se este texto fosse uma resenha, poderia dizer que airton escreveu um livro construído sob forte lirismo ao revisitar a devastação humana presente no garimpo de Serra Pelada, alinhavado à complexa relação entre a rude singeleza do amor entre dois homens e o desdobramento do preconceito dessa intimidade, estendendo-se ainda ao contexto das formas conservadoras das relações conjugais, remexidas na narrativa. mas prefiro o apego sem tamanho de nomes, pelo qual a leitura vem com tudo na quebrada das determinações. por dentro de algumas corrupções, eis um pouco dos trechos marcantes:
A estrutura próxima à cava estava idêntica a uma oração sem a mínima clemência de deus. Por isso, tinha certeza de que a palavra amém não faria nunca mais sentido em cada metro de Serra Pelada.
a adulteração imagética das preces é um modo de conduzir a violência para algo mais intenso em relação àquilo que se deixa em evidência. o sexo forte toca no conservadorismo de quem não aceita o amor e seus vários modos de realização, tanto pela violência quanto pelo afeto (claro que quando aqui me refiro à violência não quero dizer a intimidação a outrem, e sim a ocorrência do que não se enquadra nas zonas de conforto de cada um ou uma. o amor é bruto também quando dá certo).
orações não se restringem aos ritos litúrgicos. Serra Pelada reconfigura o amém. muito se enganam aqueles que concebem a intermediação no ato orativo. deus é um nome sem nome. uma profundidade sem escuro, perceptível quando há o salto mortal amarrado numa vertigem sem endereço. é você e ele. a gente. sem mais:
Deus, semeia em meu corpo a misericórdia da palavra horizonte. Faz nascer nas mãos dos bárbaros a fome dos jardins, amém.
por essa exortação, vejo quão grande é a tentativa de fazer caber no corpo o desejo pela potencialização de limites. no entanto, a quebra da ostentação do humano ao conferir existência às coisas – dado seu vício subjetivo pela criação – tende à tensão iluminada por fronteiras. muito já se disse sobre a capacidade do horizonte em alargar paisagens, isto é, quanto mais se vai a ele, mais ele oferece caminhos. nessa doação destinal talvez esteja sua misericórdia, uma vez que poderia ser compreendida na compaixão da palavra horizonte a recepção dos juízos, isso porque horizonte pode ser compreendido como abertura ou imagem-limite tensional que coaduna a harmonia dos contrários. nessa conjugação dual, a semeadura encontraria no corpo a terra na qual poderia brotar um arsenal para fugas.
pela metamorfose da imagem se fecunda o imaginário das leituras. fazer nascer nas mãos a fome de algum modo consuma o ideal devorativo da crueldade, mas a sagacidade do poeta/escritor promoveu umas dissonâncias na percepção dessa frase. afinal, a ideia de jardim passaria longe de uma composição paisagística em função da brutalidade com a qual se invoca a misericórdia da palavra horizonte a deus, portanto, comparece a ambiguidade de sua abertura/limite, já apontada acima. percebo nisso uma avidez em cujo sentido haveria a inversão da beleza, porque a fome dos jardins é pela destruição, a qual viria pelas mãos dos bárbaros. eis o desejo que desenterra da lama a necessidade pela fecundação, dada a devastação da narrativa. o que se quer é sair da sina exploratória. apesar desse desejo, o vício pelo lampejo de um futuro a partir do que a terra poderia oferecer fez crescer a insistência por profundidades, e este termo não é uma metáfora, é uma condição:
A Serra Pelada é uma terra sem flores. O buraco cada vez mais fundo deixou os garimpeiros com a sede monótona dos horizontes.
a escavação foi desenhada na morte e aprofundou a celeuma dourada dos homens. cavava-se mais e mais, e nem o fundo seria o prêmio para alguma consolação. não havia alívio porque não havia fim, apenas a insistência pela depressão da terra. os precipícios nascidos eram um limite entre homens e chão, divisa constantemente remarcada pelo buraco, cada vez mais fundo. por mais degraus que se metesse escavação abaixo, a sede monótona dos horizontes tomou o lugar de qualquer perseverança que tivesse cor diferente da de lama. o tom retilíneo das afetações por mais fundura fez desver horizontes enquanto lugar de doação, transformando-o num repetidor atonal. a sede era monocromática.
Cada dia era como se os garimpeiros possuíssem uma nascente ancorada no peito. A maioria deles empalidecido dos pés à cabeça. A pele entendendo mais de distância do que de amor.
ter uma nascente ancorada no peito traduz de algum modo a cabeceira do que se torna enxurrada. buraco adentro, o que jorra é lama. a purificação não estaria a cargo da água, mas possivelmente na lenta esperança pelo bamburro. haveria, de repente, uma romantização pela espera, a qual engrandecia o tom empalidecido dos corpos. a decisão pela escavação se firmava no esquecimento da própria identidade. não que fosse essa a vontade daqueles homens, mas tardava em seu dorso o tempo do anoitecer. então, só restava o sono.
o amor não era. ou se fosse, tal qual o sinônimo de união, tendia a se perder no fundo da cava. o buraco sem fim de gentes equalizava as diferenças, sobrando só distâncias. estas, presas na lama corpo afora, fome adentro, ficavam tatuadas na alma da pele. a distância se tornava destino ou se rendia à história dos que por lá ficaram. fazia parte da metafísica das escavações a etimologia das ossadas como parte integrante da memória de Serra Pelada e seus desabamentos.
Queria ao menos ter aprendido a assombrar a infância dos que matam e dormem tranquilamente tentando enterrar estrelas no próprio peito.
a constelação de fúria dos que deixaram sua história em Serra Pelada acende o peito aberto de céu das gentes à procura de alguma despedida. o adeus apartado da vida no dia a dia entre sacos de estopa cheios de cascalho causa o desejo dissonante em se querer resolver o presente doído numa ação pretérita. a gramática até teria um nome para isso – particípio passado –, mas acho que nela não se prevê a medida visceral dos termos. era só a vontade de resolver a brutalidade desde a raiz. era como se nem houvesse infância. por um lado o sofrimento de quem tinha o corpo castigado e, por outro, quem castigava e engolia a seco a história das gentes ou de qualquer dignidade alheia. a noite encobria o brilho das dores, e identidades eram apagadas ou jogadas no saco da reificação.
em Serra Pelada, cada homem era apenas a continuação de sua própria desgraça.
não havia singularidade no sobe e desce dos “paredões repletos de adeus-mamãe”. havia uma continuidade. diferente de se escrever poemas em letras minúsculas, como se todos fizessem parte de um mesmo movimento poético, cujo sentido profundo da poesia ultrapassasse o âmbito normativo da escrita poemática, na cava não havia a tensa harmonia com a qual se concebe o itinerário da produção contemporânea de poetas (ou, por que não, de escritores e escritoras, independente do modus operandi pelo qual escrevem). havia, isto sim, a homogeneização das gentes, como se todos fizesse alusão à gênese da criação cristã, pela qual todos teríamos vindo do barro. no entanto, sem o romantismo das fabulações desse mito de invenção da humanidade (mais um deles), todos eram concebidos pela desgraça. tal indigência limava a diferença e ramificava corpos, pernas e braços como uma monstruosa centopeia humana, formada pelo junção de cabeças e cus a subir e descer barrancos.
p.s. o romance Outono de carne estranha, foi escrito por Airton Souza e publicado pela Record em 2023, devido à vitória do autor no Prêmio SESC de Literatura 2023. vale frisar que aqui, neste texto que escrevo para a “palavra : alucinógeno”, não há a pretensão de enquadrar o livro do Airton nos moldes de uma resenha típica. tendo em vista o objetivo desta coluna, cuja intenção é, de algum modo, metabolizar um poema – romance, conto ou qualquer coisa escrita que me cause saltos mortais –, e devolvê-lo aos leitores e leitoras após essa tentativa de corporificar um gesto poético em palavras. na presente arquitetura, citei alguns (dos muitos!) trechos nos quais considerei forte a intervenção poética, sem qualquer intenção elucidativa. apenas segui um liame ao qual me agarrei para conduzir estas linhas que você acabou de ler. tomara que tenha dado certo!
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de na escuta o gatilho (Rizoma Projetos Editoriais, 2023), A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Contempo, Poesia Avulsa, Mallarmargens, InComunidade, Quatetê, Arara, 7Faces e na própria Vício Velho.