Coluna | Sentido
Sim, eu entendo o efeito Prêmio. Ainda temos alguma confiança nas instituições, nos seus membros e representantes. Isso é bom, um colapso institucional não ajudaria em nada.
Sentimos o frisson. Queremos ler, assistir, ouvir as obras vencedoras. Bom, pode ser que no caso de certos prêmios nem tanto, a não ser na perspectiva de quem os ganha. Esses sempre cedem ao encanto do prêmio.
Refiro-me também às recompensas difusas: a boa recepção, os elogios corpo a corpo, os olhares de ambrosia, a deposição de louros da crítica, o agitar de ramos do público. Tudo isso inebria.
Repito: tudo isso, mesmo na menor dose, é assustador e inebriante. Não é preciso sabê-lo por experiência, basta recorrer ao repositório daquilo que sabidamente temos em comum, sejamos junguianos, estruturalistas ou não. Mergulhai nesse caldeirão a vossa concha.
Degusta.
Sente?
É brilhar, ainda que de um brilho modesto. É sagrar-se membro da linhagem dos criadores.
Contudo, a obra _ (me falta um adjetivo para isso), que sempre tem algo de excêntrico, algo de extravagante aos primeiros olhos, não precisa de nada disso, ou melhor, sobrevive na natureza selvagem sem esses adereços. Não gira em torno do prêmio e de recompensas como insetos em volta de uma lâmpada. Ela voa. O mais direto possível, ainda que sempre em espiral, para o desconhecido, do qual traz um favo por pura gula de generosidade e senso de destino trágico, ou disposição para o moderado sacrifício da rejeição.
Ainda que sonhe com o reconhecimento, aceita a indiferença com resignação, e a bem da verdade o público em geral não lhe é indiferente, apenas não sabe que existe. É diferente. Milhares de artistas agitam suas bandeirolas, milhares de touros (quem não é um touro dentro em si, onde ninguém olha?) feridos em seu amor próprio exibem ao anfiteatro as bandarilhas – banhadas em sangue. Mas não há como degustar todos os vinhos. Tendemos a escolher os consagrados pelo tempo e os indicados por sommeliers (some liers?). Uma questão de confiabilidade.
Assim, a obra convencional se mostra confiável desde o início, ao mesmo tempo ou na medida em que acena com suas possibilidades de disrupção regulamentar, promete surpreender da forma esperada, ou, muito pelo contrário, jamais surpreender, a não ser pelo poder de comoção com o qual referenda um discurso pré-existente. Uma atitude que pode se revelar um tanto esquizofrênica. A verdade é que toda obra a adota em maior ou menor grau. Ainda que de vez em quando o grau seja zero.
Além disso, a obra _ (será preciso forjar a palavra?) tem-na, a indiferença, na conta de uma possibilidade de razão do público. Quem sabe ela não seja tudo o que pensa, ou delira. Quem sabe seus pontos altos sejam depressões, quem sabe esteja de ponta-cabeça.
Na obra que justifica sua existência, na obra _, contudo, habita a evidência de um artista que ousa assumir o risco de ser mal interpretado, não por ódio, mas por algo mais triste, algo mais frio: o desprezo. Um artista com tal brio tem que ser aquele disposto a atravessar o Deserto das Expectativas Frustradas, embora a vida seja tão dura que ser um desses jornadeiros não implique em ser um artista cuja existência se justifica. Nada sabemos ao certo, e isso pode ser um bom indício, pois os que se sabem justificados estão em sua maioria, expressiva maioria, injustificadamente confiantes.
Mesmo entre os institucionalmente laureados, não se sabe quais a mão do futuro recolherá em sua palma, e que mão será essa, e se a mão estará lá; são como cachorrinhos num abrigo recebendo a visita de potenciais adotantes, campeonato de exibicionismo dos próprios atributos irresistíveis.
O que te move é algo além disso? Então continua. Não se trata de conseguir ou fracassar, triunfar ou desistir. Trata-se de já se estar bebendo da taça. O urso já chegou à colmeia. O esquilo já está armazenando suas nozes. Já está conhecendo a intimidade da avelã. Talvez esteja apto, agora, a planar e plasmar uma obra imbuída de seu elã único e intransferível a não ser por essa ponte de castor: ela própria, a obra. A obra – personalíssima.
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João Paulo Parisio (@jpparisio), nascido no Recife em 4 de setembro de 1982, é autor de Legião anônima (contos, 2014, Cepe editora), Esculturas fluidas (poemas, 2015, Cepe editora), Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018, editora Patuá) e Retrocausalidade (romance, 2020, prêmio Pernambuco, Cepe editora), obras que o situaram entre os expoentes da literatura brasileira contemporânea. Apontado pelo crítico José Castello como “um dos principais nomes da nova geração de narradores brasileiros”, tem ainda textos veiculados em revistas, jornais e sites especializados.
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